quarta-feira, 2 de maio de 2007

Notas Finais - Peregrinação a Pé - Parte I

INÍCIO Tudo tem um início, um meio e um fim. Comecemos pelo início. Embora ninguém saiba bem dizer qual ele seja. De há tempos a esta parte o Movimento do Carmo Jovem adoptou uma máxima: Jovens Leigos em Movimento. Deve ter sido aí o início. Ou antes, quem sabe. Preparamos a peregrinação a pé a Fátima com os cuidados devidos, conscientes das incertezas e de que nunca há nem previsão nem solução para tudo. Peregrinar tem muito de inesperado e de perigoso. Não há porém como ir. Foi assim que no dia 27 de Abril fomos acolhidos e nos acoitamos no Convento do Carmo de Aveiro. Deitamo-nos convencidos de que o bom sono seria um bem escasso nos dias seguintes. De manhãzinha levantamo-nos cedo. Uma mão foi batendo às portas e mandando erguer os corpos aninhados no chão das celas. Acordamos bem dispostos como quem se lança a um grande empreendimento. Sorvemos o pequeno almoço incertos do caminho e do tempo que haveríamos de percorrer e das dores que faltava sofrer. Depois, na Capela de São João da Cruz, celebramos a Missa do Peregrino e do envio. À saída, no Altar de Santa Teresa, recolhemos uma pequena rosa que haveríamos de entregar a Nossa Senhora de Fátima. (Como chegariam aquelas rosas a Fátima? E como chegaríamos nós? Não sabíamos. E quem poderia saber?) Faltava ainda tirar a fotografia de grupo, que tirámos junto da imagem do Santo de Aveiro. Somos treze: seis rapazes e seis raparigas, e o Frei João Costa. Há quem tenha vindo despedir-se e animar-nos a caminhar. Lamentam não peregrinar connosco, mas penhoram a sua oração por nós. [Primeiro dia] Partimos. Os primeiros metros atravessaram velozmente a cidade deserta e adormecida e o Campus Universitário. Quando paramos pela primeira vez para retemperar as forças e refrescar a cara tínhamos percorrido mais de 10km. Surpreendentemente parecia que ir a Fátima a pé não custava nada, que iríamos e voltaríamos no mesmo dia, que engoliríamos o caminho como um incansável e monstruoso papa-léguas. Ao lançarmos de novo o corpo ao caminho já nos doía tudo. O corpo arrefecido e os músculos tensos, preanunciavam as primeiras tempestades de dor que brevemente cairiam sobre nós. Seguimos. Afinal, Fátima é já ali. O sol ia quente e alto. Paramos por volta das 13h00, porque não há motor que ande sem ter que queimar. MEIO Pouco depois de nos sentarmos naquela simpática tasca pensei que alguns de nós já não nos levantaríamos. Os músculos pareciam colados, rígidos, presos. Comemos. Levantámo-nos. Quando estávamos prontos para o caminho alguém lembrou que comeramos sem abençoar nem agradecer os alimentos. E logo ali, num profundo silêncio, agradecemos ao Senhor os alimentos para o caminho. Jamais voltaremos a comer sem rezar. Seja em casa, seja na tasca ou no monte. A tarde está quente. Por sua vez, os camiões parece que querem comer-nos; vêem directos a nós e só no último minuto se arrependem e se desviam. É assim que avançamos. Sem medo. Já não caminhamos tão unidos assim. Os risos estão para trás. Caminha-se em pequeninos grupos ou isoladamente, numa fila bastante longa. Chegadas as três horas da tarde rezamos o terço. Improvisa-se uma solução: fazemos pares. Os rapazes do lado do trânsito, as raparigas do outro lado. E avançamos. E rezamos. Quando nos apercebemos tínhamos vencido uma longa recta. Alguém opina que quando se reza se caminha melhor e o caminho não custa tanto. Mas ficamo-nos por aqui. Seguiremos em silêncio até à merenda. A merenda revela humores diferentes, atrasos no grupo, bolhas em formação e aumento, suores quentes, e nuvens a anunciar chuva. (será?). Estávamos em Portomar, a uns 10 quilómetros do fim da etapa. Há quem queira fazer ali a tenda, mas o senhor Branco traz-nos uns morangos frescos e manda-nos comer «só um». Ninguém obedece: comemos dois e três, e aí vamos nós. Os morangos animaram-nos. Como de costume não sabemos o que nos espera. E espera-nos apenas o teste mais difícil do dia: uma recta enorme de largo e de comprido que custa muito a comer e que cada um faz como pode, ou de rastos ou arrastando-se. Quando nos acolhem na Casa da Sagrada Família (Praia de Mira) é como se fosse a nossa. Há, porém, umas terríveis escadas para vencer, levando malas e sacas. O banho foi tão bom, a sopa foi tão boa, a oração foi tão boa, os curativos foram tão bons que ao cairmos na cama adormeceu uma pedra em nós. Bem, não dormimos todos, porque, ao lado, um grupo de adolescentes infernizou os ouvidos que ficaram no extremo da casa. Paciência. Toca por último o telemóvel, é uma SMS que diz: «Chegaste. Procura ir de bem em melhor». Ao acordar repararei que todos receberam a mesma mensagem, mas ninguém sabe quem a enviara. Este foi o primeiro dia. A primeira etapa. Deus viu que era bom. Nós vimos que era doloroso. [Segundo dia] Às cinco em ponto uma mão invisível pelo lado de dentro percorre as portas dos nossos quartos e toc-toc, toc-toc, acorda-nos um a um. Depois, como podem, os corpos arrastam-se até à capela e da capela ao refeitório. Digo bem, arrastam-se. Alguém acha que somos a Tribo dos Pés Arrastados. Acha e bem: não há um de nós que caminhe direito. Quando reiniciamos o caminho já há luz e muitos passarinhos a cantar. E frio. Avistamos também os primeiros peregrinos. Avistamo-los. Aproximamo-nos. Saudámo-los. Ultrapassamo-los. E seguimos. Pela frente estão as rectas da Tocha. Diz a tradição que o segundo dia é o pior. Talvez seja por o corpo acusar o embate com o sacrifício, talvez seja por causa daquelas duas intermináveis rectas. Oh! Aí vamos, pela frescura da manhã, procurando convencer o corpo a andar. O dia não aquecerá nunca demasiado, nem cederemos demasiado aos resmungos das dores. Mas quando, pelas 9h00 chegamos à Tocha, paramos para tomar um cafezito. Um cafezito ou um cafezão, pois ninguém parece querer fazer-se ao caminho. Tomamos então uma decisão acertada: vamos cantar, caminhar a cantar. E lá fomos. Passamos a feira semanal da Tocha e agora uns e depois outros batem-nos palmas. «Assim sim. Assim é que deve ser. Sacrifício, mas a cantar!» As palmas e os incentivos animaram-nos até meio da longuísssssima recta da Tocha. Quando nos trazem um bolo de iogurte preferimos antes olhar para as bolhas. Depois, cada um queixa-se como pode. Por fim, repomos os pés ao caminho porque sentados não vamos longe. A freguesia de Alhadas, Figueira da Foz, aproxima-se e isso anima-nos. Um carro passa por nós e pergunta se somos «Os jovens Carmelitas». Somos, claro. E claro, que está tudo bem. E estava tudo bem, menos as naturalíssimas queixas. Depois do almoço conhecemos a nossa anfitriã de Alhadas, a Carmelita Secular Alice Montargil, da fraternidade da Figueira da Foz. Vem ao nosso encontro com um enorme sorriso e muita disponibilidade, traz também um bordão de peregrino e nós oferecemos-lhe uma faixa do Movimento. Afinal, vai caminhar os últimos oito quilómetros connosco. Aos primeiros metros do caminho formamos para o Terço. E será assim que cruzaremos pinhais, linha do comboio, montes e ribeiras sem darmos conta. É a cantar que entraremos na Capela de Santo Amaro da Amoreira (Aquela comunidade sabedora da passagem dos peregrinos requerera a nossa presença. Querem que ali rezemos. Querem que comamos a sua merenda). Ali entramos, ali rezamos, ali cantamos. E rezamos novamente. Entretanto, o sino toca insistentemente. Indistintamente, ora toca um ora toca outro. É tanto assim que quando saímos da Capela a comida é mais que suficiente para treze batalhões de peregrinos. Com a melhor das boas vontades honramos a benfeitoria que nos fazem. Fomos tão delicados quanto o possível, mas, é claro, quem poderia comer tanto! Cantaram-nos o cântico da Senhora do Carmo e abalamos. Abalamos dali, cansados e reconfortados, ansiando um banho, uma massagem e uma cama. Era Domingo do Bom Pastor e ainda haveríamos de preparar a Eucaristia na Paróquia de S. Pedro de Alhadas. Partimos tão lenta e desajeitadamente que uma encurvada anciã de 92 anos, que vem ao nosso encontro se desmancha a rir do nosso mau andar. «Vão com Deus», diz ela. E nós lá vamos sem chegar a ver a pancarta que a comunidade de Santo Amaro da Amoreira mandara fazer, mas não chegara a erguer pelo muito que nos antecipáramos na passagem. Ao que sei, a tarja dizia: «Benvindos, jovens peregrinos carmelitas. A comunidade de S. Amaro da Amoreira saúda-vos!». E lá fomos agradecendo aquela benfeitoria, aquela carinhosa atenção ao peregrino, aquele mimo que o bom Deus nos enviava a nós, ruins peregrinos. Ao chegarmos ao Centro Paroquial de S. Pedro de Alhadas estava a receber-nos o Rev. Pároco Pe. Pedro Hoka. Com a sua amabilidade abriu-nos as portas do Centro e da sua Igreja, para aconchegarmos o corpo e a alma. Esperavam-nos algumas famílias que nos levaram a suas casas para tomarmos banho. Mais simpatias e delicadezas do nosso Deus não poderia haver! Ó que bom Deus temos nós, e quão bem paga Nossa Senhora os nossos sacrifícios. Às sete da tarde o Frei João celebrou a eucaristia numa capela muito inacabada, mas suficientemente protegida para a assembleia se congregar e rezar. A Igreja nunca está acabada, dizem-nos. E é verdade. Era domingo do Bom Pastor e o Bom Pastor curou as nossas feridas, chamou-nos pelo nome, falou-nos, alimentou-nos e confirmou o nosso envio. À Eucaristia seguiu-se um digníssimo jantar que não merecemos, mas que agradecemos pedindo ao Senhor que cumule de dons e graças a comunidade de S. Pedro de Alhadas. Depois do jantar a Dª Alice Montargil leva para sua casa as raparigas e metade dos rapazes. Acolhe-os como sobrinhos. Acarinha-os. Reconforta-os. Aquece-os. Protege-os. Amanhã, quando acordarmos vem ao nosso encontro, reza connosco e traz-nos vinte saquinhos com o almoço. Olhamos incrédulos uns para os outros. Como se pagará tudo isto? Não sabemos. Deus saberá. Foi o segundo dia. Deus viu que era bom e nós também. Estava quase a adormecer quando soa nova SMS, que diz: «É mais importante (começar a) ir que ter chegado». Sim, talvez seja. Ainda não sabemos quem manda as mensagens. Boa noite, vamos dormir.