sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Santa Teresa de Jesus - Cap.5



V

NO CONVENTO DA ENCARNAÇÃO




Teresa permaneceu ano e meio no colégio das Agostinhas da Graça; mas, atacada de doença grave, teve de se retirar para casa, onde logo melhorou. Note-se que a filha de D. Alonso não abandonou sem mágoa aquele recolhimento porque andava já bastante mudada nas suas ideias e virada um tanto ou quanto para as coisas do espírito, embora tivesse ainda horror à vida religiosa, como ela própria confessa.


Para assegurar a convalescença, foi passar alguns tempos em casa de D. Maria de Cepeda, sua irmã mais velha, que morava em Castellanos de la Cañada, passando por Hortigosa, pequena aldeia onde visitou um seu tio, irmão do pai, D. Pedro de Cepeda, homem austero, piedoso e amigo dos bons livros. Este fidalgo castelhano, depois de ter enviuvado, fez-se monge, recolhendo ao mosteiro dos Jerónimos em Ávila, onde morreu nos braços do Senhor. Queremos fazer especial menção deste parente de S. Teresa, porque exerceu influência decisiva na sua formação moral.


Acolhida com carinho por D. Maria e seu marido, Teresa entregou-se de alma e coração aos exercícios de piedade e às boas leituras, enquanto o seu débil organismo recuperava as forças perdidas e tomava novo vigor.


Não se sabe o tempo que se demorou na companhia dos seus irmãos, aproveitando os ares daquelas elevadas serras, quase sempre coroadas de neve.


De regresso a Ávila, encontramos Teresa, até à idade de 21 anos, vivendo como as donzelas da primeira sociedade avilesa: ora em casa, dedicada ao arranjo do lar e aos trabalhos manuais, ora na igreja assistindo às devoções e actos do culto, quando não ia ter com suas colegas, tomando parte nos passeios elegantes, aos domingos, em volta do Arco do Alcázar e nas festas populares.


Em Maio de 1534 o Imperador Carlos V visitou a cidade de Ávila a fim de prestar juramento de guardar e fazer guardar os privilégios e regalias daquela nobre e leal cidade. Foi recebido sob pálio, à moda da época, pela fidalguia, clero e povo, recebendo, em salva de prata das mãos do Presidente do Município as chaves da fortaleza. Ávila viveu, por essa ocasião, dias de júbilo e regozijo vibrando de entusiasmo o povo avilês. Não será arriscado afirmar que lá estaria também a formosa filha de D. Alonso (contava então 19 anos), alegrando suas companheiras com o raio de sol do seu sorriso franco e leal.


Mas a verdade é que Teresa não se sentia bem no burburinho da rua. Tinha alguém no Castelo Interior da sua alma que a chamava para dentro, que a solicitava, que lhe dirigia veementes apelos no sentido de não seguir o partido do mundo.


Andava então a ler um livro que lhe fez imenso bem à alma: as Epístolas de S. Jerónimo. A palavra viva, empolgante deste Santo Padre da Igreja, tecendo o elogio da vida religiosa, a sua linguagem clara, cortante, concisa, aconselhando Eliodoro a passar por cima do cadáver do pai se ouvisse a voz de Deus a chamá-lo para o deserto, não pôde deixar de calar fundo no espírito de Teresa, que já estava um tanto desapegada, devido aos espinhos que ia encontrando pelos caminhos da vida.
*


Por estes dias tinha abraçado a vida religiosa no mosteiro das Carmelitas da Encarnação, de Ávila uma sua amiga, D. Joana Juárez. Embora não lhe louvasse Teresa o gosto, também não lhe desagradou por completo a escolha daquele estado. É que, nesta altura, já não sentia aquele horror de outros tempos pela vida monástica, mas também não queria ir para freira. O convento da Encarnação, que Santa Teresa tornou célebre, e que ainda hoje é visitado com vivo interesse por turistas e peregrinos, está situado extramuros de Ávila, do lado norte, a uns 500 metros da cidade. Tem linda horta com pomar, chafariz e roseiras, claustro magnífico com arcadas de pedra em volta do jardim conventual. A igreja do mosteiro, que serve de sepulcro a fidalgos espanhóis, é das que convidam a alma a subir para Deus.


Nesta casa religiosa, onde moravam perto de duzentas freiras, como rezam velhos pergaminhos, tomara o hábito de carmelita a amiga de Santa Teresa. Como era grande a amizade, lá ia a filha de D. Alonso visitar amiudadas vezes D. Joana Juárez. Parece-nos vê-la sair da cidade amuralhada pela porta do Carmo, rumar ao norte, descer a encosta, atravessar o rio Ajates pela ponte de pedra e entrar na Encarnação. Elegante mas modesta, veste uma saia alaranjada, conta-nos D. Inês de Quesada, freira daquele mosteiro, com franjas de veludo preto, segundo a época. Agora, Teresa prefere estes passeios até ao mosteiro, consultar letrados e visitar casas de caridade, a aparecer nos salões e sítios onde se reunia a sociedade feminina, fazendo pouco caso de galas, modas e penteados.


Na Encarnação havia, e há ainda, locutórios com grades de ferro onde se recebiam as visitas. Num destes, D. Joana do lado de dentro e Teresa do lado de fora, conversavam frequentemente, longas horas. Umas vezes recaía a conversa em coisas indiferentes, outras, quase sempre, o tema eram assuntos espirituais. De regresso a casa, Teresa parecia recolhida, concentrada, como que a viver dentro de si. Alguma coisa importante se está a passar no espírito da jovem donzela... É que, por um lado, a leitura assídua das Epístolas de S. Jerónimo e, por outro, a palavra eloquente e inflamada de D. Joana Juárez estão a acordar nela a primitiva vocação religiosa, quando em pequerrucha construía ermidinhas no jardim da casa. O facto incontestável é este: Teresa torna a sentir atracção pela vida de freira. O combate, porém, que se está a travar no seu coração é duro, rijo sobremaneira. Deus e o mundo solicitam-na continuamente, à porfia. Hesitante entre dois mundos, não sabe para onde virar-se. Irá para o convento, ou abraçará o estado do matrimónio? E o pior é, como ela própria confessa, que não havia amor mas temor servil, medo aparente do inferno para onde iria se se deixasse ficar no mundo. Ao fim de três meses de profundas reflexões, única e exclusivamente para assegurar a sua salvação, Teresa resolve-se pela vida religiosa. Quer ser freira e sê-lo-á, custe o que custar; sente ser esse o chamamento de Deus.


Quando deixar o lar para ir à Encarnação, sentirá no corpo como que uma deslocação ou desarticulação geral dos ossos, tão forte que não sentirá maior quando morrer, como ela diz. Todavia, Teresa nada receia por conhecer ser essa a vontade de Deus. Nunca uma menina fez mais conscienciosamente uso da sua liberdade como nesta ocasião a formosa filha de D. Alonso. É esta indubitavelmente uma das fases principais da vida de Santa Teresa, um dos pontos culminantes da sua preciosa existência, e que constitui um desmentido formal às afirmações dos que a não compreendem, chamando-lhe mulher histérica.


Com 21 primaveras floridas, e tendo diante dos olhos um futuro brilhante e sedutor, Teresa manda o libelo de repúdio ao mundo para seguir incondicionalmente o partido do Senhor.

Obstáculos? Há um só a vencer: o pai, que de forma alguma permitirá à filha retirar-se para o convento. E com toda a razão. Não era Teresa para D. Alonso, já envelhecido e abandonado por quase todos os filhos que criara, a menina dos seus olhos, o raio de sol que alumiava e aquecia o inverno da sua vida? Sem a filha idolatrada, o pai logo sucumbiria à morte, mergulhando-se para sempre nas trevas do sepulcro. Teresa, contudo, não desiste do seu intento, na certeza de que Aquele que lhe deu a vocação Se encarregará de confortar o ser que ela mais ama na terra. Pela sua parte, poupar-lhe-á a dor lancinante duma despedida... Quando o pai der pela falta da filha, já estará Teresa na Encarnação, donde ele não a mandará tirar; disto está ela bem certa. E se bem o pensa, melhor o realiza.


Corre o ano de 1536. Numa manhã tépida do mês de Outubro, ainda as estrelas brilham no céu, já Teresa anda pelo seu quarto, em bicos de pés, para não acordar o pai que dorme no quarto contíguo. Arranja-se depressa; abre e fecha, sem fazer barulho, armários e gavetas, arruma todas as coisas, sai do quarto e abre, toda nervosa mas resolvida, a porta que dá para a rua, abandonando para sempre o lar... Só Deus sabe quanto lhe custa este sacrifício. Vai na companhia de seu irmão António, cinco anos mais novo. Este dirige-se para o convento de S. Domingos para vestir o hábito de frade, aconselhado por Santa Teresa; esta, por sua vez, abala sozinha para a Encarnação, a fim de realizar o seu sonho. De quando em quando volta a cabeça para trás; quer ver se alguém lhe segue os passos. Não vê ninguém na rua solitária. Ao atravessar o limiar das portas do mosteiro, olha pela última vez atrás de si e vê, ao longe, no cimo da colina, a cidade amuralhada, espreguiçando-se, dormente. É o romper do dia...
[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]