sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Santa Teresa de Jesus, a história continua...


XII

OUTRAS FUNDAÇÕES

Com ordem ou patente assinada pelo Provincial, Frei Ângelo de Salazar, em 28 de Agosto de 1563, isto é, um ano depois da inauguração, passara a Madre Teresa, definitivamente, do mosteiro da Encarnação para o seu convento de S. José onde as Descalças observavam a Regra de Nossa Senhora do Carmo, sem mitigação alguma, tal qual a ordenou Frei Hugo, Cardeal de Santa Sabina, em 1248, no ano V do Pontificado do Papa Inocêncio IV.


D. Teresa de Ahumada levou consigo três religiosas da Encarnação que tinham, como ela, desejos de vida mais perfeita.


Reza a tradição que a reformadora entrou, de passagem, a fazer oração na ermida de Nossa Senhora da Soterroña, no bairro de S. Vicente, onde tirou o calçado, seguindo descalça para S. José. Assim, com este gesto de devoção a Nossa Senhora, cujo hábito trazia, quis iniciar Madre Teresa a sua vida de monja reformada.


Duas coisas, porém, queria deixar bem estabelecidas e assentes no seu primeiro mosteiro, protótipo dos Carmelos que havia de fundar: primeira, que fosse muito reduzido o número de religiosas que neles morasse; ao princípio só quis admitir 13, concordando depois em que se elevasse o número até 21, mas não permitindo que fosse mais além; segunda, que, sempre que fosse possível, fundassem seus Carmelos sem quaisquer rendas, opondo-se, neste ponto de capital importância para a perfeição, ao parecer dos seus grandes confessores e insignes teólogos, P. Pedro Ibañez e P. Domingo Bañez, que, fundamentando-se na concessão de possuírem bens em comum, outorgados aos mosteiros pelo Santo Concílio de Trento não viam nada de mal no facto de terem rendas alguns dos mosteiros da Madre Teresa. A um deles – parece que foi Frei Pedro – que lhe enviara algumas páginas cheias de ciência teológica para a convencer a fundar alguns mosteiros com rendas, respondeu com notável desassombro que para cumprir o voto de pobreza que tinha feito e seguir os conselhos de Cristo com toda a perfeição não precisava da sua teologia nem das suas letras... É que Madre Teresa, como ela própria dizia, queria imitar Jesus Cristo, pobre e despido na cruz. Por isso, para fundar mosteiros sem renda alguma, alcançou do Santo Padre um Breve assinado em Roma a 17 de Julho de 1565.

Vale a pena registar aqui o apoio que neste sentido lhe prestou sempre, com os seus conselhos, o Santo Frei Pedro de Alcântara. Dias antes da sua morte, mandou-lhe um bilhete por intermédio do Dr. Gaspar Daza, sacerdote muito piedoso, insistindo ainda uma vez mais com ela no ponto da pobreza extrema.

Mais. Até Nosso Senhor Jesus Cristo, nas suas frequentes aparições, lhe dizia que não aceitasse as rendas que lhe ofereciam. Mosteiros destes, pobres, vivendo de esmolas e do trabalho, observantes, fundados na austeridade e solidão da Regra primitiva do Carmo, queria-os Santa Teresa de Jesus espalhar, aqui e além, por toda a parte, na sua pátria.

Não nos deve passar despercebido que, desde a sua entrada definitiva no convento de S. José, em Agosto de 1563, quis a Reformadora chamar-se Teresa de Jesus, e assim começou a assinar os livros do convento como Prioresa da comunidade. Trocou o apelido fidalgo de Ahumada pelo de Jesus, seu Rei e Senhor, que, um dia, abrindo-Se amorosamente com ela, depois de comungar, lhe falou assim: “De hoje em diante zelarás a minha honra, como verdadeira esposa”.
Correm os anos. É o dia 12 de Agosto de 1567. O sol é de abrasar. Vai para dois meses que não chove em terras de Castela. Pela estrada de Ávila a Arévalo, rodam lentamente três carros com grandes toldos de lona, puxados por muares, levantando nuvens de poeira. Seguem um sacerdote a cavalo e diversos moços de lavoura a pé. São a Madre Teresa de Jesus, suas monjas descalças, o capelão, P. Julião de Ávila, e alguns criados. Vão a caminho de Medina del Campo onde querem fundar um convento de Descalças.
Embaixatriz do Rei Celestial, como lhe chama a Santa Igreja, queria levar a toda a parte a boa nova da Reforma da veneranda Ordem de Nossa Senhora, fundada agora em Castela e depois na Andaluzia, terra de luz e de flores, “palomarcitos de la Virgen”, como ela dizia, onde donzelas chamadas por Deus à vida do Carmelo vivem com inocência de pombas, rezando e fazendo penitência pelos que defendem a Santa Igreja.
Lá vão, pois, a Madre e suas filhas em direcção a Medina; mas convém notar que, dentro dos carros, seguem as Carmelitas fundadoras o mesmo rigor de observância que no mosteiro de S. José. Vestidas com o grosso burel da Ordem, de cor castanha, capa branca e véu negro para velarem o rosto quando obrigadas sair dos carros, fazem a meditação, rezam o Breviário, cantam salmos, trabalham ou guardam silêncio nas horas regulamentares, tal qual como se estivessem em clausura. A quem muito observasse esses carros, daria a impressão de conventos ambulantes...
Trazem pendurado um pequeno sino, com relógio de areia, para se regularem por eles.
Não falta nunca a Missa às romeiras, durante a viagem, nem assistência religiosa, porque irá sempre em sua companhia, até conseguirem ter frades carmelitas Descalços, o próprio capelão do convento de S. José de Ávila, sacerdote exemplar, dedicadíssimo à Madre Reformadora, e um dos seus mais ilustres biógrafos.
Nestas fundações de novos mosteiros terá Teresa de Jesus de tratar e trocar cartas com pessoas de todas as categorias sociais: reis, príncipes, bispos, grandes do reino, nobres, fidalgos, sacerdotes, frades e freiras, criados, gente humilde do povo. Agora vai apreciar o mundo as raras prendas e excepcionais qualidades de inteligência e de coração com que Deus dotou esta grande mulher, prendas e qualidades que as criaturas irão pôr, inconscientemente, à prova.
Um escritor português enumera, um por um, melhor do que ninguém, esses dotes que fazem de Teresa uma rara maravilha de mulher:
“Beleza, fidalguia, distinção, coração, bondade, delicadeza, vontade, energia, carácter, alegria, serenidade e sorriso, pensamento, arte, critério, intuição, génio e santidade consumada” – eis Teresa, a ilustre Reformadora do Carmelo. Ora, esta inigualável mulher sem par que, na sua humildade, se julgava a criatura mais miserável da terra, e nesta conta queria ser tida, exultando de júbilo quando era desconsiderada e Deus lhe proporcionava bocados amargos, como atesta o P. Jerónimo Graciano, seu Superior e confessor, mete agora ombros a este empreendimento de espalhar pela sua pátria o Reino de Deus e a Ordem de Sua Mãe Santíssima já reformada.
Mas note-se que vai empenhar-se nesta obra, destinada à maior glória de Deus, por obediência, isto é, com beneplácito de seu confessor, do Provincial do Carmo, e com ordem expressa do Sr. Bispo de Ávila, D. Álvaro de Mendoza, a quem estavam sujeitas as Descalças.
“Nada sem obediência, tudo com obediência” é o lema desta grande carmelita, espelho de humildade, como o prova o que sucedeu quando da fundação de Sevilha. “Estava projectada outra em Madrid, tendo a Santa visão para ir antes à capital da monarquia. Todavia, como o Provincial lhe dissera que fosse primeiro a Sevilha, preferiu antes obedecer do que seguir o seu próprio juízo ou mesmo a revelação. Isto levou o Provincial a perguntar-lhe por que, tendo ela o espírito de Deus, segundo era notório, antepunha a tudo o juízo humano, como era o dele, que podia enganar-se. A Santa respondeu-lhe que, enganar-se podia ela nas suas visões, e por isso preferia a obediência, onde não podia haver equívoco”.
Sendo Santa Teresa tão obediente, não admira que chegasse a escrever no livro das Fundações frases como esta: Não há caminho mais curto para atingir os píncaros da perfeição que o da obediência.
Guiada, portanto, a Madre Teresa pela mão amiga da obediência, sai de Ávila com suas freiras e o capelão, pernoita na vila de Arévalo, embalada pelas mansas e cristalinas águas do rio Adaja, e segue viagem, chegando a Medina perto da meia-noite do dia 14 de Agosto, vigília da Assunção de Nossa Senhora.
Era Medina, com o seu histórico castelo, empório de riqueza na Espanha do século XVI, notável pelas suas célebres feiras de renome universal a que concorriam negociantes da França, Alemanha, Flandres, Itália, etc., entre eles não poucos protestantes, luteranos, seita esta que, como peste, começava a grassar pela Europa.
Hoje Medina já não tem essa importância comercial, sendo apenas ponto de entroncamento obrigatório das comunicações internacionais. Havia, naquela vila, um convento de Carmelitas Calçados, cujo Prior, Frei António de Herédia, homem de vida interior e letrado, estava incumbido pela Reformadora de arranjar casa para a fundação das Descalças, mas só tinha encontrado uma bastante velha, quase a cair, da qual só se podia aproveitar uma sala, que serviria para capela.
Como tinham surgido ultimamente algumas dificuldades que podiam embaraçar a fundação, a Santa Madre, que já havia dispensado, em Arévalo, os carros, os criados e algumas freiras, não quis fazer ruído em Medina com a sua entrada e, por isso, resolveu continuar viagem com duas freiras e o capelão, a cavalo, em mulas, e entrar na vila pela calada da noite... Os biógrafos de Santa Teresa registam aqui, com agrado, que esta grande mulher sabia também montar muito bem e que não lhe faltava jeito e arte para dominar a montada quando ela se espantava.
Mal acabavam de cair as doze badaladas da meia-noite, no relógio da Colegiada, chegavam à beira do convento carmelitano a Fundadora e seus companheiros. Querem saber onde fica a casa comprada para a fundação, porque a Madre Teresa deseja tomar posse dela, celebrando-se a Santa Missa, no próprio dia 15 de Agosto, Festa da Assunção. O capelão bate fortemente à porta; as pancadas reboam por aquelas ruas silenciosas e escuras. Todos receiam qualquer facto desagradável...
Nesta altura ouve-se, ao longe, vozearia, algazarra... Que será? E a Madre Teresa falava há pouco em passar despercebida! Três frades do Carmo, mandados pelo Prior, e um fâmulo do Sr. Bispo prontificam-se logo para os acompanhar até à casa destinada a convento. A vozearia vai aumentando assustadoramente... Todos apressam o passo, com natural nervosismo; levam na mão objectos de culto para a primeira Missa: toalhas, missal, paramentos, galhetas, etc. Dir-se-ia que acabam de cometer um furto e fogem à polícia. A algazarra chega ao máximo; é que o povo de Medina, galhofeiro e barulhento, corre apaixonado, atrás de uns novilhos que vão para o covil, destinados à tourada do dia seguinte. Não há meio de os evitar.
São apanhados em plena rua, alta noite, com todo o apetrecho dum altar improvisado a Madre Teresa, os frades, as freiras, o capelão, o criado do Sr. Bispo. Nada, porém, acontece, além de risadas, gargalhadas, remoques graciosos. “Foi grande misericórdia do Senhor – diz Santa Teresa, contando, com pilhas de graça, as peripécias daquela fundação – não toparmos com um touro dos que naquela noite se encerravam”.
A casa alugada para mosteiro estava quase em ruínas e, todavia, devia arranjar-se tudo para se rezar a primeira Missa, logo ao romper do dia, porque a Santa Madre entendia ser essencial ao acto de posse da fundação. Duas, três, quatro da madrugada... tudo trabalha afanosamente na limpeza da casa e no arranjo da capela, à luz bruxuleante de velas, sob a direcção da Reformadora. O que lhes valeu foi o senhorio, que lhes emprestou tapetes, cortinas, colgaduras, damascos para se taparem as paredes meio esburacadas e arruinadas.
O sol ia nascer lá longe, nas imensas planícies castelhanas, vestidas de dourados trigais, onde parece juntarem-se a terra com o céu. De manhãzinha, apareceu na casa-mosteiro o P. Prior do Carmo, Frei António, que quis ter a honra de celebrar a primeira Missa e pôr o Santíssimo Sacramento, enquanto uma sineta conventual, pendurada à última hora no telhado, anunciava aos habitantes de Medina a inauguração duma igrejinha, pobre e desmantelada como a lapinha de Belém, e o início da vida carmelita descalça num casebre adaptado a convento. A Santa Madre não cabia em si de alegria, ao pensar que tinha contribuído alguma coisa para que o Santíssimo Sacramento tivesse mais um tabernáculo no mundo. Do alto duma janela, a Santa Fundadora velava o Santíssimo, passando as noites em claro, com receio de que fosse profanado pelos luteranos, que andavam à solta nas feiras de Medina. Volvidos oito dias, passaram-se as Descalças para o último andar da casa dum rico mercador daquela terra que delas teve dó e onde arranjaram capela e encontraram algum conforto.

Asseguradas as fundações de Ávila (1562) e de Medina (1567), não descansou Santa Teresa, obedecendo aos apelos de Nosso Senhor que lhe exigia pressa na fundação de outros mosteiros. E assim, com licença dos seus Superiores, confessores e Bispos, que acabaram por se render totalmente aos seus desejos, chegou a fundar Santa Teresa de Jesus conventos de Descalças em Malagón (1568), Valladolid (1568), Toledo (1569), Pastrana (1569), Salamanca (1570), Alba de Tormes (1571), Segóvia (1574), Beas (1575), Sevilha (1575), Caravaca (1576), Villanueva de la Jara (1580), Palência (1580), Sória (1581, Burgos (1582).
Em todas estas fundações, com excepção da de Palência onde tudo correu às mil maravilhas, teve imensas dificuldades a vencer, contratempos, dissabores, desgostos... quer para obter a licença, quer para arranjar casa onde recolher as freiras e rezar a primeira Missa; além, é claro, dos incómodos e peripécias das viagens em carros ou a cavalo, únicos meios de transporte.
Acresce ainda que estas viagens ou excursões apostólicas eram longas, de três, quatro, cinco jornadas, ficando depois a Santa Madre esfalfada e doente.
Mas tudo vencia a prudência, discrição e tino de Santa Teresa em gerir negócios, embora ela, como humilde e santa, o atribua unicamente a Deus Nosso Senhor. “Nestas fundações, escrevia a Reformadora, é quase nada o que fizeram as criaturas, foi Deus Quem quis fazer tudo”.
[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]