sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Santa Teresa de Jesus, a história continua...

XIII

POR TERRAS DE CASTELA

Quase todas as fundações realizadas por Santa Teresa, tanto em Castela como na Andaluzia, onde tinha receio de fundar mosteiros por diversas causas, como ela própria diz, ficaram assinaladas por algum acontecimento notável, digno de registo. Em Medina foi encontrar providencialmente a Santa Madre os dois homens que Deus destinava para pilares do edifício da Reforma da Ordem entre os frades: Frei António de Herédia, Prior do Carmo, e Frei João de S. Matias ou, por outro nome, S. João da Cruz. Foi justamente na vila de Medina que falou com eles pela primeira vez, ficando tudo combinado para o início do grande empreendimento, como se dirá no capítulo seguinte.


Em Malagón, terceira fundação da Madre Teresa, inaugurada no Domingo de Ramos de 1568, a pedido da sua dedicada amiga D. Luísa de Ia Cerda, aquela viúva fidalga que tinha ido consolar, há seis anos, em Toledo, deu-se um caso que não deve passar despercebido. Era, por via de regra, antes ou depois da Sagrada Comunhão que ouvia falas divinas ou tinha êxtases ou arroubamentos. Como ficasse lá uns dias e comungasse na capela do seu mosteiro, foi tão forte em certa ocasião o arroubamento do seu espírito, que ia levando consigo para cima o corpo da Madre... de tal maneira que o sacerdote mal podia chegar-lhe à boca a sagrada partícula. Então, com admiração de todos, esta foi, voando, pousar na língua de Santa Teresa. Escusado é dizer como ficaria embaraçada, pois não queria, na sua humildade, tornar-se reparada.

Na fundação do mosteiro de Valladolid, que ocupa o quarto lugar na ordem cronológica das fundações feitas pela Madre Teresa, foi também contemplada a Santa Reformadora com uma visão. À elevação da primeira Missa que se rezou (15 de Agosto de 1568), Santa Teresa viu subir ao Céu, como lhe tinha prometido Nosso Senhor quando andava a fazer os preparativos para esta fundação, a alma do fundador, D. Bernardino de Mendoza, irmão do Sr. Bispo de Ávila. Disse-lhe então Nosso Senhor que esta alma tinha estado em grande risco de se perder para sempre, mas que tinha tido pena dela por D. Bernardino lhe ter oferecido a sua própria casa para mosteiro da Ordem da Sua Mãe.
A fundação em Toledo (1569) proporcionou ocasião a Santa Teresa e às duas companheiras que levou consigo, de praticarem grandes virtudes básicas na vida religiosa: a pobreza e a obediência. Apesar de terem sido hóspedes de D. Luísa de la Cerda, dama rica e fidalga, no seu palácio daquela cidade, a verdade é que foram tomar posse do seu convento e inaugurar a fundação na maior pobreza; só tinham duas enxergas e um cobertor, mais nada..., nem uns gravetos para assar uma sardinha..., no dizer da própria Santa Teresa. Foi Deus Quem assim o ordenou. A Santa Madre não costumava pedir, nem incomodar ninguém; esperava que Nosso Senhor enviasse o necessário para o sustento das Suas esposas.
No que respeita à obediência, apenas um exemplo. Perguntando, um dia, a Prioresa a uma das Descalças de Toledo o que é que ela faria se a mandasse lançar-se no poço cheio de água que lá estava, mal tinha acabado de pronunciar estas palavras quando a boa da freira se atirou a ele, sendo necessário, como conta a Santa Reformadora, vestir-se de novo...
Foi também nesta casa que a Santa Madre viu um dia Nosso Senhor à cabeceira duma freira moribunda – Petronila de Santo André, 1576 –, de braços abertos, amparando-a com toda a meiguice e ouviu ao mesmo tempo estas palavras: “Prometo-te assistir assim a todas as freiras que morrerem nestes mosteiros. Não tenhas receio de que sejam assaltadas de tentações à hora da morte”.
Por ocasião da fundação na vila de Pastrana (1569), realizada a pedido da Princesa de Éboli, D. Ana de Mendoza, esposa do Príncipe Rui Gomes da Silva, oriundo de Portugal, grande favorito do Rei de Espanha, teve ensejo Santa Teresa de mostrar o seu carácter e a sua energia mais que de mulher:
O caso passou-se assim: a Princesa, dotada de grande formosura, mas um tanto ou quanto inconstante e voluntariosa, começara a intrometer-se no governo do convento, tirando umas coisas e pondo outras a seu bel-prazer. A Santa Madre opôs-se tenazmente, considerando intangível e da sua exclusiva incumbência a vida das Descalças nos seus mosteiros.
Continuando o abuso, teve a Madre Teresa de se impor, ameaçando os fundadores de suprimir a fundação e levar as suas freiras. O Príncipe, homem inteligente e probo, logo concordou com a Madre, pondo-se do seu lado e chegou a insistir muitas vezes, junto de sua mulher, para ela entrar também num acordo. Porém, não houve meio. A soberba Princesa teimava em impor seus caprichos e veleidades e intrometer-se naquilo que lhe não dizia respeito.
O Carmelo de Pastrana já não era, nem podia ser, um asilo de paz. Nesta altura, 29 de Julho de 1573, morre o Príncipe Rui Gomes. Na sua grande mágoa só teria um único conforto, dizia a desconsolada Princesa: entrar no Carmelo, tomando ela também o hábito de descalça. Como prometia com lágrimas não tornar mais a preocupar-se com a vida regular do convento, os Superiores da Ordem e a Santa Madre anuíram ainda a esta sua veleidade. Porém, não tendo a inconstante Princesa cumprido o que prometera, Santa Teresa, que se não rendia a títulos nobiliárquicos, nem ao dinheiro nem a fidalguias, resolveu, com licença dos Superiores (nada fazia sem o conselho deles), suprimir o mosteiro de Pastrana e levar as suas freiras para Segóvia.
Assim acabou esta fundação, digna de melhor sorte, mas a Santa Madre soube manter com energia inquebrantável os seus direitos e os das suas filhas pobres, muito pobrezinhas, mas fiéis à Regra e ao seu espírito.
Foi este, no nosso entender, o primeiro encontro que teve a Madre Teresa com gente portuguesa na pessoa do ilustre Príncipe Rui Gomes da Silva, em Maio de 1569 e parece-nos que não foi de todo desagradável, porque a Santa Madre e Rui Gomes logo se entenderam, quando esta lhe explicou a natureza e finalidade dos Carmelos que fundara. Se o Príncipe tivesse sobrevivido à Princesa, ainda hoje estaria de pé a fundação do mosteiro de Pastrana, como se conservam todas as outras fundações realizadas por Santa Teresa. Haja em vista o rasgado elogio que a Santa Reformadora tece a este ilustre fidalgo português, que soube insinuar-se no ânimo do Monarca Espanhol.
Outro contacto com portugueses teve Santa Teresa por este tempo, mais ou menos, ao tratar com D. Leonor Mascarenhas, dama portuguesa favorita da Imperatriz D. Isabel, esposa de Carlos V, residente em Madrid.
Chegara ao conhecimento desta piedosa senhora a fama de santidade e prudência que aureolava já a figura da Madre Teresa e, como o convento de freiras Carmelitas chamadas da “Imagem”, fundado com o seu apoio em Alcalá de Henares pela Ven. Maria de Jesus, não progredia, por certos extremos de austeridade e penitência estabelecidos pela fundadora, mulher de grandes virtudes mas nada exímia na arte de governar, pediu a Santa Teresa para ir lá pôr as coisas no seu lugar, estabelecendo a vida religiosa em alicerces sólidos.
A Santa Madre, ansiosa da glória de Deus e da perfeição das almas, chegou a ir a Alcalá para se tornar agradável a D. Leonor Mascarenhas. Foi nesta ocasião que a Madre Teresa passou por Madrid (tantas vezes havia de passar lá no decorrer das suas fundações!) onde era esperada com viva curiosidade por senhoras madrilenas da melhor sociedade. Tantas maravilhas tinham ouvido contar!
Por fim, um belo dia, lá lhes apareceu a ilustre freira Carmelita. Cumprimentou-as com finas e delicadas maneiras ao descer da carruagem:
– Oh! que lindas ruas tem Madrid, disse a Santa.
E ficou assim tudo conquistado e rendido a seus pés, tendo-lhe as senhoras feito grande festa, encantadas com o seu porte, trato e conversação lhana e franca. À noite, foi pousar no mosteiro das Franciscanas fundado por esta piedosa dama portuguesa.
Não se sabe ao certo quanto tempo se demorou Santa Teresa no convento das Carmelitas de Alcalá, mas o certo é que, com tino e prudência, conseguiu reorganizar a vida conventual a contento de todos.
A fundação do convento das Descalças em Salamanca ficou assinalada, não só pela engraçada expulsão dos estudantes universitários do velho casarão dos Gonzaliañez pela Madre Teresa que queria fundar aí o seu convento, ao cair da tarde do dia de Todos os Santos (1 de Novembro de 1510), quando os sinos de todas as igrejas e capelas da cidade dobravam a finados, mas também com três milagres operados pela própria Madre Teresa.
Depois de fazer a limpeza naquele velho e desmantelado casarão e de aprontar os preparos para se rezar a primeira Missa, a Reformadora e sua companheira, Maria do Sacramento, deitaram-se sobre palhas e uns sarmentos secos. Esta monja, incapaz de pegar no sono, passeava a vista por toda a parte. Os sinos continuavam a dobrar a finados e ouvia-se o sibilar do vento.
– Para onde é que olha? – diz-lhe a Madre. Então não vê as portas e as janelas fechadas? Não vê que ninguém pode entrar?
– Madre – acode ela – dominada como estou pelo medo aos mortos, queria saber o que é que faria vossa mercê se eu morresse aqui, neste instante, ficando sozinha, dentro deste casarão em ruínas, onde pode estar ainda escondido algum estudante.
A Madre, sempre e a toda a hora senhora de si e dos seus nervos, solta uma risada e responde-lhe assim:
– Oh! filha, agora deixe-me dormir sossegada e tranquila; quando isso acontecer, pensarei bem o que hei-de fazer.
Esta resposta põe em evidência o que era o espírito superior de Santa Teresa.
Reza a tradição que, trabalhando uns operários no telhado deste convento de Salamanca, caíra um tijolo, matando instantaneamente uma criança de poucos anos. Penalizada, a Santa Madre pegou na criança morta, apertou-a fortemente contra o seio, levantou os olhos para o Céu em atitude de quem ora, e a criança voltou à vida. E, assim, entregou-a viva a seus pais.
Foi também nesta cidade salmantina que a Reformadora restituiu a saúde a duas moribundas. D. Maria de Arteaga, moradora no palácio dos Condes de Monterrey, estava quase às portas da morte. A pedido dos condes, foi visitá-la a Santa Madre. Movida de compaixão, pôs as mãos sobre a cabeça da enferma que subitamente sarou...
Quem é que me toca, perguntou a doente, que já me sinto bem?
Santa Teresa recomendou-lhe por amor de Deus que se calasse, mas logo se espalhou o milagre.
Passados poucos dias deu-se o mesmo caso com uma filha dos Condes de Monterrey.
E não admira que Santa Teresa operasse tais milagres. Nesta altura da sua vida – andava por volta dos seus 55 anos (1570) –, só vivia para Deus, fazendo-Lhe a vontade em todas as coisas e zelando pela Sua honra, designadamente desde que Deus lhe mandou um serafim transverberar o seu coração. É justo e razoável que Deus, por sua vez, lhe faça a vontade a ela, quando a Santa Madre insiste “O meu Amado para mim e eu para o meu Amado”.
No ano seguinte, 1571, estando ainda a Santa Madre em Salamanca, o Visitador Apostólico dos Carmelitas Descalços, P. Frei Pedro Fernandes, nomeado por Bula de Pio V em 20 de Agosto de 1569, manda-a, na qualidade de Prioresa, ao mosteiro da Encarnação de Ávila.
O mundo com as suas vaidades havia entrado demasiadamente neste mosteiro e as monjas, por sua vez, tratavam de mais com o mundo; daí a sua ruína espiritual e material. Até o pão de cada dia lhes chegou a faltar.
Só a Madre Teresa, pensou o Visitador, com o seu tino invulgar e prudência, seria capaz de levantar este célebre mosteiro. Mas havia de se contar com a oposição à Madre Teresa, que não seria pequena. Por isso julgou conveniente o Provincial, P. Alonso González, apresentar ele próprio a nova Superiora à Comunidade.
Reunidas as freiras na sala do Capítulo, o Provincial procedeu à leitura da patente em que o Visitador Apostólico nomeava a Madre Teresa de Jesus Superiora daquele convento. As últimas palavras do Superior foram abafadas por murmúrios e vozes de protesto das freiras, cujo número era superior a cem. É que as Carmelitas Calçadas da Encarnação receavam que a Madre Teresa as fosse governar como se elas fossem Descalças. Santa Teresa aguentara todo aquele temporal de insultos, em silêncio, de pé, junto à cadeira do Provincial.
Serenada a tormenta, perguntou o Superior às religiosas:
– Então V. Rev.as não querem a Madre Teresa?
Silêncio absoluto na sala capitular.
– Sim, queremo-la, diz em voz alta D. Catarina de Castro, e até somos amigas dela.
Estas palavras que Deus pôs na boca daquela religiosa, decidiram a questão a favor da Madre Teresa, que ficou reconhecida como Superiora da comunidade. No dia seguinte, Santa Teresa manda tocar a sineta e chama as freiras a capítulo a fim de tomar posse do cargo.
Entre as freiras há grande expectativa. A nova Superiora vai fazer a sua primeira conferência à comunidade. É tudo ouvidos. O silêncio é absoluto no capítulo.
– Minhas senhoras, madres e irmãs – começa por dizer a Madre Teresa com a sua voz melíflua – quis Deus Nosso Senhor, nos Seus altos juízos, que eu fosse escolhida para Superiora deste mosteiro, cargo que venho hoje assumir por obediência. Só venho aqui para vos servir e consolar, tanto quanto eu puder. Filha sou desta casa e irmã de Vossas Rev.as. Não receeis o meu governo, porque, se é verdade que eu tenho vivido e governado entre Descalças, também sei muito bem como devem governar-se as que não o são.
Isto foi o bastante para tudo se render. Triunfara a Madre Teresa na Encarnação. A partir desse dia, as religiosas daquele convento só verão nela uma mãe solícita e meiga, que tudo faz para as conquistar todas para Deus. Volvidos alguns meses, passou a ser aquela comunidade, sob o governo da Madre Teresa e a direcção de S. João da Cruz, carmelita descalço, homem celestial e divino, no dizer da própria Santa, que ela pedira aos Superiores para confessor, modelo de observância regular e espelho de perfeição religiosa.
*
Concluída a fundação do mosteiro de Salamanca, passou a Santa Madre Teresa, a pedido dos Duques de Alba, à vila de Alba de Tormes (1571), que havia de ser seu sepulcro glorioso e relicário do seu coração transverberado. E volvidos mais três anos (1574) que ela viveu a governar o mosteiro das Calçadas da Encarnação em Ávila, meteu ombros à fundação do convento das Descalças de Segóvia.
O mesmo rigor de observância regular, a mesma clausura, a mesma austeridade e penitência estabelecidos no mosteiro de S. José de Ávila, foram implantados também por Santa Teresa em Malagón, Valladolid, Toledo, Pastrana, Salamanca, Alba de Tormes e Segóvia, para as suas filhas se entregarem à contemplação das coisas do Céu.
Apesar de andar quase sempre doente, com uma contínua dor de cabeça, resíduos da enfermidade de outrora e em frequentes viagens, Santa. Teresa fazia penitência, muita penitência; vivia mesmo, como diz um dos seus biógrafos, “martirizada de penitências”; e não fazia mais porque os confessores lhe atavam as mãos.
Nunca se deitava antes da meia-noite, gastando o tempo a orar, a escrever cartas para governar os seus conventos, e a redigir, ao correr da pena, as páginas preciosas dos seus livros.
Superiora dos conventos, valia-se muita vez da sua autoridade para comer os sobejos do jantar. Sempre algoz de si mesma, era, todavia, mãe carinhosa e meiga das suas filhas.

[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]