quinta-feira, 14 de junho de 2012

Notas Finais VI Clarminhada - Figueira da Foz 18MAI'12



Não são precisos nem tambores nem trombetas, nem foicinhas nem varapaus no ar. Apenas mãos que acendam fogueiras na noite. Que alguém suba aos altos montes, mesmo que chova. E sob a chuva ouse acender fogueiras. Ardam fogueiras inesperadas e improváveis nos altos montes e não será preciso que o pregoeiro erga a voz. Saberão então, os que vivem nas sombras do sono que nem as águas nem os gelos derrotarão as chamas.
Subam aos altos montes os velhos e os novos, as crianças com suas famílias, os enamorados com seus amores, os sacerdotes com suas estolas, os frades com seus hábitos. Os casados levem as suas alianças como aos anciãos levam seus cajados.
Que ninguém fique em casa, que ninguém fique com frio. Haveremos de fender a noite com a luz que vamos acender: uma fogueira passará de mão em mão até que todos os corações se acendam. E os da cidade dirão: que bela fogueira além se acendeu! Porque é que nem os ventos nem as tempestades a apagam? Porque se derramam as chuvas e não se apagam os pavios?
E se não vierem atraídos pelo chamamento haveremos de erguer bem mais alto a fogueira em nossas mãos, rasgaremos o peito e ali a protegeremos enquanto caminharmos ao encontro dos caídos no sono. Longa será a noite, mas a fogo não se apagará nem o sono vencerá. Iremos pelas coutadas, caminharemos por caminhos fora de uso, cruzaremos os casais vencidos, cantaremos o fogo vencedor.
Sim, à meia-noite acenderemos fogueiras que aqueçam, acenderemos uma luz que brilhe e guie, arderão chamas que purifiquem a moleza do sono e a indiferença dos corpos. Não dançaremos em volta, não perderemos tempo em seu redor. Tomaremos em nossas mãos os carvões e não descansaremos sem incendiar os que andam frios e desistentes.
Sim, será à meia-noite ou à meia-manhã. Virá o sol, virá a chuva, o granizo e o nevoeiro. Mas o fogo não se apagará porque hão-de vir mãos que o agarrem, corações que o guardem, pés descalços que o levem pelas manhãs frias.
Caminharemos sem tambores, sem pífaros nem trombetas, sem foicinhas ou varapaus. Só temos um fito que a fogueira não esmoreça nem se apague, e que aqui, acolá e além, num monte e noutro monte e no mais alto monte as fogueiras se acendam e anunciem à cidade que as sentinelas não dormem durante a noite!
Ardam fogueiras, queimem-se aromas e os nossos corações se alarguem, porque é noite e a Luz que não acabará.
Para memória futura, tudo fui vivido da seguinte forma:
A semana apresentou-se difícil, cheia, densa, gelada e amarga. O ano escolar já vai longo. O término das aulas e o aproximar das avaliações finais e dos exames nacionais provoca nos alunos mas também nos professores um certo nervosismo, uma inquietude que chega a ser atroz. Sofro deste síndrome profissional! Ao mesmo tempo, a vida nem sempre nos oferece o caminho mais direto e simples. Bem pelo contrário, os desafios são diários, as dúvidas e os medos amontoam-se na encruzilhada das escolhas e nem sempre as melhores decisões são fáceis de tomar.
Todavia, esta semana terminaria da melhor maneira, com a VI Clarminhada do Carmo Jovem, com o tema «Em nós mesmos, há grandes segredos que não entendemos.» (Santa Teresa de Jesus, IV Moradas 2,5).
Sinto diariamente, no meu coração, esta necessidade de me aproximar de Ti, Senhor, mas ao mesmo tempo, e com igual intensidade, custa-me tanto e é tão densa a noite! Desta vez, porém, resolvi entregar-me de todo o coração e aventurar-me por secretos caminhos, na noite escura, preenchida de quando em vez pela chuva miudinha.
Ainda há duas semanas peregrinei a Espanha, aos túmulos da Santa Madre e de S. João da Cruz, com a minha tribo completa. Desta vez tive necessidade de separar-me das minhas filhas para que os avós pudessem ser avós e eu pudesse ser melhor mãe e melhor esposa. Muito se aprende a clarminhar, e há muito percebi que é necessário separar para crescer, para aprender a ser melhor, para depois regressar ao ninho e receber aquele abraço apertadinho que aquece o coração. Ser mãe é assim: esta constante dualidade de cortar o cordão umbilical para deixar os filhos ganharem asas, mas mantê-los sempre muito próximos de nós para lhes entregar calor.
Filhas entregues, pernas a caminho. O encontro era às dezoito horas e trinta minutos na portaria do Convento do Carmo de Viana do Castelo. Preparadas as trouxas saímos rumo à Figueira da Foz. Eu, a João, o Zé, a Verónica, a Joana e o Frei João. No Porto recebemos mais um carminheiro, o meu Pedro e o mesmo aconteceu em Esmoriz com a entrada a bordo da nossa Janinha e do seu abençoado farnel. Aproveito aqui para agradecer ao Bruninho as suas horas de dedicação à cozinha e à nossa causa (que também é dele, acredito!). Jantamos por entre pingos de chuva, numa sala de jantar improvisada tendo o infinito céu como teto. As estrelas mais apressadas completavam o cenário, quais lustres de cristal num palácio setecentista. Depois de aconchegado o corpo, concluímos viajem até Alhadas. E em que alhadas nos meteriam a nós, questionava-me eu!? Imaginam o que deve ter sido clarminhar, no fim de um dia e de uma semana de trabalho duro, com frio e com chuva!? E ainda por cima à noite! De noite! Com a noite! Imaginem se conseguiriam, porque há coisas que não são inimagináveis só experienciáveis!!!
Éramos mais de setenta pessoas, vindos de Viana do Castelo, de Alhadas e de Moinhos da Gândara, de várias idades e de variadíssimos contextos. Éramos jovens carmelitas que unidos neste amor ao Carmo, preferíamos iniciar desta forma um fim-de-semana, abdicando do conforto do sofá e do quentinho de casa. Mais uma vez, repito, a vida é assim, este constante desafio de superar dificuldades, de enfrentar medos, de vencer barreiras e obstáculos. Às vezes, emperrámos numa pedrinha, outras vezes saltamos muralhas, mas vamos juntos porque acreditamos que é possível chegar mais longe.
Chegados a Alhadas recebeu-nos São Pedro, com um sorriso malandro. Sinal matreiro de quem não iria cerrar totalmente a porta das chuvas! Mandou-nos logo subir o monte. E fomos.
O acolhimento realizou-se no vetusto Dólmen das Carniçosas, um lugar sagrado desde os tempos pré-históricos, quando os nossos antepassados decidiram registar na paisagem, com grandes blocos graníticos (os megálitos), o local escolhido para o eterno descanso dos seus.
Era noite e com chuva. Noite no monte, noite longe de tudo. Noite no negro mar ao fundo, noite no negro do cosmos que caía por cima nós, noite por todos os lados. E até o monumento, mais antigo que a esperança, nos falava da noite!
Como não haveria o Carmo Jovem de acender uma fogueira em tão alto monte e tão dura noite?
Cumprimentadas os representantes das autoridades locais, e entregues aos jovens da comunidade o Cajado e a Cruz que sempre nos acompanham, iniciámos, por fim, a Vigília de Oração proclamando o louvor da Luz terna e suave, no meio da noite, pois aspirávamos chegar mais longe. 




Acendemos o Círio Pascal, nossa luz invicta, que, noite fora, nos acompanharia até à Igreja de S. Pedro das Alhadas. Sim era noite densa, mas não tão densa que se não deixasse penetrar por nossos cânticos e pela Luz. E noite dentro, como Círio aceso à chuva lá fomos cantando pausada e repetidamente: P´ra te adorar é que eu nasci, / para te exaltar a Ti, Senhor. / A minha alma tem sede de Ti, / O meu espírito necessita de Ti!
Para louvar e adorar subíramos ao monte. Aceso o Círio ali, rezamos e cantámos noite fora. Depois partimos acompanhados pela chuva miudinha que nos batia no corpo e por algumas estrelas que desciam do céu e fendiam as nuvens. Pelo caminho perturbamos alguns poucos patuscos animais que já iniciavam o segundo soninho! E testemunhámos a fuga para as discotecas. Nós, porém, carminhávamos confiantes, pois sabíamos que Tu, Senhor, és a Luz que ilumina a terra inteira.
À porta da Igreja de São Pedro entoámos já se ouvem nossos passos a chegar e recebemos uma pequenina vela que acendemos no Círio e fomos penetrando no espaço sagrado, confiantes que esta luz pequenina, iremos sempre deixá-la brilhar. Uma igreja dos finais do século XVIII, com S. Pedro como padroeiro, recebeu-nos nesta noite escura, agora iluminada pela Luz de Cristo que nos fitava com um olhar penetrante e vivo. Estava ELE em todo o lugar e estava também num belo quadro delicadamente envolto em pano azul celeste, olhando-nos e convidando-nos ao silêncio. Depois de colocarmos as pequenas velas aos pés de Cristo Ressuscitado, ouvimos atentamente as palavras de S. João da Cruz e de Santa Teresa, nossos pais, que sempre nos acompanham. De seguida, a Coordenação do Movimento convidou-nos a confiarmos um segredo muito secreto num coração de papel que posteriormente foi depositado numa caixa, a caixa dos segredos que levaríamos pela noite dentro e confiaríamos a Jesus Eucaristia. Assumimos no papel o segredo mais cor-de-rosa ou o mais negro, aquele que depositamos por baixo da almofada ao dormir ou até o que abafamos constantemente no último reduto da nossa alma, com uma esperança vã de que desapareça.
Confiado o segredo no pequeno baú encerrámos a Vigília. Depois aconchegamos o corpo num chá quentinho e fumegante e continuamos rumo ao desconhecido, por secretos caminhos de Alhadas, por secretos caminhos do nosso coração.
Era bem noite. Chovia e nós sem medo. O Rogo ardia verdadeiramente em nossos corações!
A próxima paragem seria na Capela de Nossa Senhora da Guadalupe. A guardiã esperava-nos, qual esfinge faraónica. Um grupo de jograis animou a oração e os cantores deliciaram-nos com um cântico à Mais Linda do Mundo, a Mais Linda desta terra, Maria. Do altar-mor, a vetusta Senhora da Guadalupe nos abençoava e amaciava as primeiras dores que, entretanto, começavam a surgir. Compreendam! Não temos todos vinte anos e os ossos já não são o que eram, não gostam nada nem de chuva, mesmo que miudinha, nem de frio, nem de caminhos duros. Mas a Equipa Organizadora em tudo pensou e mais uma dose de chá foi o suficiente para a máquina reiniciar a sua engrenagem. Avançamos agora rumo à Capela de Santana.
A meio caminho, numa singela homenagem. Santa Teresa adiantou-se e veio ao nosso encontro. Ainda não faz 500 anos, mas não quis deixar de nos falar, embora fosse noite, embora chovesse.
Na Capela de Santana esperava-nos a Padroeira e outro alguém muito especial: S. João da Cruz, uma vez que esta paragem lhe era dedicada, ou não fora ele o Padroeiro do Grupo de Acólitos local! Incitado, o Frei João Costa partilhou connosco alguns aspetos da marcante vida do nosso Pai, Frei João da Cruz. E nós ouvimos como podemos, que ele só se calou quando quase todos dormíamos! (Eram quatro horas da manhã!) Depois, ajoelhados, rezámos-lhe uma oração de louvor e ação de graças.
O avançado da hora, a privação do sono, o cansaço e o frio que se entranhavam nos esqueletos, começavam agora a pesar brutalmente. Esta última fase da clarminhada teria sido ainda mais dura e mais amarga se não nos contagiasse o fogo da alegria dos amigos fortes de Deus que nos acompanhavam. Desta feita, aprendi então que sendo possível medir um campo de futebol com um fósforo, é também possível medir um fósforo com um campo de futebol! Sim, é verdade! Quem o afirmou, fê-lo com grande convicção. Também descobri nesta hora derradeira de carminho, que a Igreja onde rezaríamos missa era já ali! Mas o já ali era bem mais à frente, muito mais à frente. Um mais à frente a que nunca mais chegávamos! Eram os amigos a animar-me para o carminho. E percebendo a minha impertinência, e talvez a de outros, a Organização, durante mais uma oportuna paragem, presenteou-nos com umas surpresas maravilhosas: uma projeção de fotografias de outras atividades realizadas, uma melodia ao vivo e a cores por entre a noite mais escura. Assim se animam os carminheiros, assim se amenizam as dores, assim se fortalece a alma, assim se mantém viva a fogueira, assim, por fim, chegámos à tão desejada Capela de Nossa Senhora da Saúde, em Moinhos da Gândara. Os pardais anunciavam já o nascer do dia e os galos impunham a alvorada. Os primeiros raios de luz apareciam.
Eram quase seis horas da matina, era o novo dia!
Após um breve descanso, rezámos missa. A Eucaristia é o banquete sagrado no qual recebemos Jesus Cristo como alimento da nossa alma. Um momento de união íntima com o Pai, onde ganhamos força para continuar a carminhar. A ELE oferecemos as nossas fraquezas, as nossas falhas, as nossas vitórias, as nossas lágrimas e sorrisos, com a confiança no seu perdão e na sua infinita misericórdia. A ELE pedimos por nós, pelas nossas famílias, pelos que estão afastados e pelos que estão ao nosso lado, para que nos ilumine com a sua Luz, que nos abençoe com a sua mão amiga com a certeza de que na TUA palavra eu carminharei até que a TUA graça me deixe viver!
Enfim, o novo dia iniciava-se da melhor maneira possível, entre amigos fortes e com o Amigo que sempre está connosco. E o fogo não se apagara, antes revivescera!
Findo o pequeno-almoço vieram as despedidas, sempre tão difíceis! Porque é que o que é bom acaba depressa? Bem, tenho a consolação de que, como alguém dizia durante a noite, só falta um mês para acabar a semana e por isso a próxima atividade do Carmo Jovem não tarda a chegar.
À Equipa Organizadora, a Sofia, a Célia, o André, o Paulo e a todos os que colaboraram diretamente com eles na preparação desta atividade do Movimento do Carmo Jovem, o mais sincero obrigado. Muito obrigado pela forma como nos receberam, pelos pormenores com que nos deliciaram, pelos sorrisos e abraços, por serem Carmo Jovem nas vossas comunidades.
Até sempre! Até Já!

Ana Margarida Caramez