quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Notas Finais III - Clarminhada

Após a ceia retemperadora de Terça chegaram notícias boas da Márcia. Lavados os pratos e os tachos, com lanternas e agasalhos subimos ao Santuário de Nossa Senhora do Acampáki. Não creio que se possa falar de serenidade. Os mais experientes estavam ansiosos: o Carmo Jovem nunca tinha feito uma clarminhada. Os mais novos não sabiam como haviam de estar, porque o carminhar ainda é muito novo para alguns. Mas o que é uma clarminhada? É uma coisa nova, é uma carminhada na noite feita na esperança clara de vencer o escuro da dúvida e da incerteza. Há tanta noite na vida de cada um (E às vezes é noite por excesso de luz informadora!) que talvez seja necessário fazer passar o breu das nossas noites pela claridade da noite de Deus que se insinua pela fé nas nossas vidas. Foi assim que entramos no Santuário de Nossa Senhora do Acampáki: dispostos a confiar-lhe a vida, dispostos a carminhar na noite com Ela em busca da Luz. Numa pequena oração (ao longo da noite suceder-se-iam outras) confiámo-nos ao seu amor de Mãe e logo mesmo antes de partir recebemos a imposição do Santo Escapulário e outros que ali não o tinham dele se revestiram. Foi assim que partimos: envolvidos pelo amor da Mãe. Não vi medo, mas garra. Não vi perrice, mas alegria. Num instante percorremos a veiga esquerda do Lima. Ao atravessarmos a Ponte de Lanheses cruzamo-nos com o Caló e a Sameiro, jovem casal do Carmo Jovem, que nos vinha visitar mas para quem tivemos pouca paciência por causa do muito que nos faltava subir. Depois da ponte aproximou-se a Márcia e o Miguel: não quiseram regressar a Aveiro sem nos saudar. E saudaram calorosamente com direito a retribuição. E continuamos a clarminhada. Era noite, por companheiros levávamos o latido insistente e surpreendido dos cães, algum suor, conversas serenas e pés para andar. Quase sem darmos conta achámo-nos na escadaria da Igreja Paroquial. Era uma da manhã. Ali nos esperava o João e a Clea com chã quente e chã frio, bolachas e bolachinhas, pão e pãezinhos, sumos e suminhos e muita vontade de nos animar a subir a clarminhada que nos propuséramos. Tragado o bocado que nos estava reservado despedimos em agradecida oração estes bons amigos e prolongamos um pouco mais a nossa, porque o osso duro de roer estava a chegar. De Meixedo a São Lourenço da Montaria o passeio é rápido. Oh que delícia tornear suavemente a montanha adormecida, sentir o cheiro fresco da terra e o perfume das vinhas. E se os sentidos se espantam com o que a terra e o céu nos dispara, não menos os cães se surpreendem ao sentir ao longe a nossa chegada. Em São Lourenço da Montaria a montanha mostra o que é. Há ali uma tão inclinada subida quanto curta. É a montanha a receber-nos e a dizer-nos que o viver da fé não é fácil. Formam-se pequeninos grupos e depois mais pequenos ainda. Ninguém clarminha só. Agora é só montanha, luzes do céu, luzes da terra ao longe, grilos por perto e em breve cavalos selvagens em grupo sonolento e surpreendidos pela presença de animais de duas patas! Subimos. Apagamos as lanternas, porque a luz da noite era suficiente. O caminho era só um. Não havia que enganar. Um pouco mais de meio da montanha vê-se bem uma imensidão de casas agrupadas por localidades e a dormir. Ao longe o mar, o mar de Viana do Castelo e talvez mais além o da Póvoa. E acolá que será, Santo Tirso? Talvez não, mas era longe e alto monte! Parámos. Bebemos água. Contámos os pés e dividimos por dois: estávamos todos! Silêncio. O mundo dorme. Ou pelo menos meio mundo dorme. Ali em baixo concerteza que quase tudo dorme. Mas nós éramos ali vigias na noite. Sentinelas atentas e discretas. E rezamos o Terço pelos que dormem. E há tantas maneiras de dormir! Dali para cima não havia vegetação. E não havia como enganar. Era só subir até ao regaço da Mãe do Minho. Subimos aos pares e em oração. Lá em baixo vem o nevoeiro a subir. Em mim morre a esperança de ver nascer um dia claro, mas jamais morrem a ideia de clarminhar até à Mãe e de descansar sob o seu olhar. Quando cheguei ao Santuário já outros tinham chegado. E outros faltavam chegar. Estava tudo cansado e com frio e o nevoeiro a chegar com um ventre cheio dele. Eram 5:00 horas da matina! Alguns abriram os saco-cama e meteram-se neles. E depois todos. Deitámo-nos sob o pórtico do Santuário recentemente dedicado à Senhora do Minho. Entretanto, aproxima-se uma vaca cuidadosa e alguém tira a cabeça fora do saco-cama e assusta-se com o bicho e o bicho com a cabeça assustada. Depois vem um cavalo (no original, um asno). Disse-lhes que eram poucos para um presépio tão grande. Que fossem à vida. Cá nos arranjaríamos. É certo que as palhas eram de pedra dura, mas os sacos valer-nos-iam. E o calor da Mãe também. Afinal valem mais três horas sob o pórtico frio do Santuário, que mil anos nas tendas aquecidas dos injustos. Às 8:00 começou o regresso. Esperava-nos um banho reconfortante e o chão fofo das tendas do AAcampáki. As restantes horas do dia serão como que uma longa e sonolenta lengalenga.