[Terceiro dia]
À hora prevista acordamos para o terceiro dia da peregrinação. Durante a noite chovera torrencialmente. Mas tal não impeceu sono algum, porque o caminho ao Senhor pertence. Nós apenas temos de percorrê-lo.
Depois da oração matutina eis-nos de novo a caminho. Foi uma etapa linda. Chegam as primeiras colinas que nos animam a correr. Inesperadamente quase não temos dores. O tempo está fresco. Parece que voamos. Nas primeiras horas fazemos muitos quilómetros. A cantar…
Por fim paramos num planalto para nos refrescarmos. Eis que então, só então, reparamos numa nuvem escura que cavalga feroz ao nosso encontro. Arrancamos de novo, porque Fátima é já ali. Mas ainda não percorreramos meio quilómetro e a nuvem desagua sobre nós. Não houve como fugir. Quando os carros de apoio nos recolhem estavamos como pintos. Recolhemo-nos no adro duma igreja (Marinha das Ondas), trocamos de roupa, descansamos os corpos, e ficámos à espera que a chuva passasse.
Quando nos lançamos de novo ao caminho fazemo-lo com tanta gana que não paramos na meta prevista: fizemos mais dez quilómetros! Não é que não tivéssemos dores, a vontade de chegar a Fátima é que era maior.
Quando chegamos ao Barracão voltamos para trás, para o Centro Paroquial da Ilha. O Rev. Pároco Pe. António Nogueira não pôde receber-nos mas delegara na Dª Adelina que o faz carinhosa e maternalmente. O Centro está impecável, lindo, perfeito. Depois da refeição da noite acompanhámo-la numa visita que nos deliciou, quer pelo cuidado quer pelo acerto de tudo. Ali nada está a mais, nada está de menos.
Rezamos a oração da noite descansadamente. No fim o João Pestana reclama o que é seu, mas todos lhe resistem. Há quem queira falar, há quem queira lavar a alma. Os primeiros reclamam alguns acertos, outros desfazem-se em elogios. Os segundos falam de retorno, de regresso, de alegria e de lágrimas. Sim, houve também tempo para lágrimas e evocações. Só depois é que fomos dormir. Faltava ainda a SMS mistério, e ele veio. Dizia: «Quem anda em amor não cansa nem se cansa».
Deus e nós vimos ao longo do dia que tudo fora bom.
[Quarto dia]
Dizem que ao quarto dia se voa. Talvez venha a ser verdade. Também é verdade que acordamos espontaneamente. Ninguém bate à porta de ninguém.
Hoje a Vânia e a Orquídea, da Gafanha da Nazaré, peregrinarão connosco. Quando, por fim, pomos pés ao caminho cruzamo-nos com mais e mais peregrinos, uns daqui outros de além. Todos vamos para Fátima, para Maria, e com Ela para Jesus. Será engraçado ver que ao longo do dia nos ultrapassaremos uma e outra vez, recuando uns por causa da chuva e outros por causa das subidas. Ou das descidas, que são muito mais terríveis.
Chegados a Nossa Senhora de Fátima da Caranguejeira, fizemos uma pausa para recuperar energias, curativos de última hora, deixar uma faixa assinada por todos e rezar especialmente pelos militares do Batalhão em que o Senhor Branco se integrava a data da construção da imagem e que deveria ter ido para Cahora-Bassa (Moçambique), localidade que o Senhor Branco se encontrava na altura.
É bonito subir e descer. Hoje tudo é bonito e tudo é ligeiro. Há quem se lembre de voar, mas ainda não é tempo de voar. Porém, aqui a crónica dá um salto e abrevia-se na escrita. Basta dizer que a longa subida de Santa Catarina (chama-se assim, mas vem de muito mais longe) foi feita com aquela ânsia de chegar que verdadeiramente faz voar. E foi isso que sucedeu. Quando começou a chover já estavamos recolhidos na Capelinha das Aparições.
FIM
Finalmente depusemos as nossas rosas junto de Nossa Senhora. Uma a uma foram poisadas no parapeito que limita a Capelinha. Pude reparar: de todas as flores as nossas eram as mais feias, as mais murchas, as mais inapresentáveis. Tanto deveria ser assim, que o Servita demorou a recolhê-las. Se é que as recolheu, pois saímos dali e elas ficaram por recolher! Terá pensado que umas flores assim não se levam a Nossa Senhora. Eram feias, mas nós estávamos mais lindos.
Depois do almoço tardio, o Padre Provincial, Frei Pedro Ferreira, recebeu-nos na Capela do Convento de Nossa Senhora do Carmo. Ali quase tudo parece desactivado, e a Capela já nem Santíssimo tem. Mas foi ali que com uma tarja do Carmo Jovem aos ombros ele nos falou e nos abençoou. Animou-nos a continuar a caminhar, a percorrer os caminhos da vida. Animou-nos a não pararmos em Fátima, a jamais nos determos nas bermas dos caminhos, mas a continuar caminhando fiéis e felizes pela vida fora, percorrendo os caminhos de Deus. Qualquer que seja o caminho a que Ele nos chame.
E tudo poderia terminar aqui. Mas não. Falta dizer que se a Peregrinação a Pé do Carmo Jovem a Fátima correu bem, isso se deve e muito a Santa Teresinha e a Nossa Senhora do Carmo. A nossa Irmã inspirou a Susana e o Pedro, jovem casal do Paris Carmeli de Aveiro, a ajudar-nos. Delicadamente puseram os seus automóveis ao nosso serviço. E deram-nos um pouco de tudo: água, descanso, ânimo, carinho, bolos, fruta, palavras de conforto, sorrisos, curativos. A nossa Mãe inspirou a Dª Orquídea e o Sr. António Branco a acompanhar-nos e a cuidar cada um de nós com desvelos de mãe e de pai. Não lhes faltou paciência, humor, sensibilidade, disponibilidade, e mais, e muito mais, e um olho clínico que sabia ler os nossos estados d’alma, sobretudo quando era preciso empurrar-nos para a frente, para a meta. Sem eles a peregrinação teria sido ainda mais dolorosa. Muito mais dolorosa. Muito mais peregrinação.
Afinal, ouçam bem, afinal os anjos existem mesmo. Alguns encontram-se no caminho para Fátima. É possível que existam outros, mas estes eu vi-os e testemunho que Deus os enviou para nos tornar o caminho mais seguro. Louvado seja, pois, o Senhor por causa dos seus anjos!
A noite ia alta quando todos chegamos bem a casa. Caiu então nos nossos telemóveis o último SMS, “O peregrino não muda a sua vida só no regresso; a mudança já começou no caminho.”