sábado, 26 de fevereiro de 2011

A história continua...Santa Teresa de Jesus, cap XVII

XVII

A MÃE E OS FILHOS

Em 24 de Agosto de 1562 conseguira Santa Teresa, como já vimos, à custa de dissabores sem conta, inaugurar na cidade de Ávila, para religiosas, o seu pequeno convento de S. José, berço da Reforma da Ordem Carmelita. À fundação deste mosteiro seguiram-se outras, mas a Santa Reformadora não andava ainda satisfeita; é que não tinha realizado por completo, naquela altura, o seu sonho dourado. Ela queria e pedia incessantemente a Deus que os frades do Carmo aceitassem também a Reforma, tal qual as freiras. Mas, como meter-se uma mulher a reformar homens? Isto nunca ninguém tinha visto na Igreja de Deus. Onde encontrar vocações? Como arranjar casa para uma obra dessas? Era isto o que preocupava Santa Teresa naquela altura e o que tratou de resolver a pouco e pouco, mas começando logo no primeiro dia da sua partida de Ávila, mal chegou a Medina del Campo.
Tanto os Descalços como as Descalças Carmelitas chamam “mãe” a Santa Teresa, e com toda a razão; tanto àqueles como a estas deu ela a vida reformada do Carmelo. A Madre Teresa sente-se escolhida para esta grande obra e, como tudo fia de Deus e nada de si, lança-se, intrépida mas prudente, à realização desta empresa. E assim, escolherá ela os homens aptos para isso, dar-lhes-á suas instruções para observarem com todo o rigor a Regra primitiva quanto à oração, jejuns, abstinência de carnes, austeridade, solidão, isolamento do mundo. Ela própria, com suas filhas, lhes talhará o burel, pobre, curto, de estamenha; procurará convento para eles; irá visitá-los de vez em quando, como mãe solícita e moderará com descrição os rigores das suas penitências.
Mais. Quando desabar a tormenta sobre os seus filhos, os Descalços, ela mesma os defenderá desassombradamente dos seus inimigos, mostrando a toda a gente a inocência, a vida austera, irrepreensível dos Descalços, escrevendo ela, se tanto for preciso, ao próprio Rei da Espanha.
É este, ao que me lembra, caso único na História da Igreja: uma mulher a meter homens na ordem, isto é, na observância perfeita da Regra primitiva duma Ordem Monástica das mais antigas e gloriosas. Teresa, porém, é também única, a mulher extraordinária por excelência, a mulher-prodígio.

*

No entender da Madre Teresa, os alicerces da Reforma Carmelita deviam ser estes: noviças com muito bom espírito, prioresas ciosas da observância regular e frades descalços para dirigirem as Descalças. Já tinha bastantes noviças e Superioras à medida dos seus desejos; o que importava agora era formar descalços para guias das descalças pelos caminhos de Deus.
A Santa Reformadora começou por pedir a necessária licença ao P. Geral da Ordem, Fr. João Baptista Rubeo, quando da sua passagem por Ávila em 1567. O prelado, homem de invulgar talento, grande servo de Deus, como lhe chama Santa Teresa, e amigo de toda a Reforma, anuíra de muito bom grado ao que se lhe pedia, concedendo à Santa Madre, por meio duma patente assinada em Barcelona, de regresso a Roma, em 16 de Agosto de 1567, autorização para fundar, em Castela, dois mosteiros da Regra Primitiva, contanto que estivessem de acordo o Provincial, Fr. Alonso González, e o Prior dos Carmelitas de Ávila, Frei Ângelo de Salazar.
É notável e digno de registo o documento do P. Geral sobre este assunto. Nós desejaríamos, diz o Prelado, que todos os frades e freiras desta Ordem fossem espelhos, lâmpadas, tochas acesas, estrelas cintilantes para alumiarem e guiarem todos os homens que andam pelos agros caminhos da vida...
Não é fácil dizer o júbilo de que se sentiu dominada a Santa Reformadora quando soube desta memorável patente que tanto honra seu autor, o P. Rubeo. Santa Teresa já não esperou mais. Deus o queria, e assim pôs mãos à obra.
Em Medina del Campo foi ter com o Prior do Carmo, Frei António de Herédia, que logo aceitou o convite para ser o primeiro Descalço, frisando que a Reforma da Ordem vinha mesmo ao encontro dos seus desejos e propósitos, pois que tinha resolvido já recolher à Cartuxa de Segóvia, dar-se todo a Deus e fazer austera penitência.
A Santa Madre agradeceu-lhe a oferta que não podia ser mais generosa nem mais sincera, mas ficou meio hesitante, a cismar... e marcou-lhe o prazo de um ano para ele experimentar, praticando aquilo que ia prometer e professar.
O P. Herédia, figura de grande relevo na Ordem, era já velho, tinha 58 anos... e assim dificilmente se poderia adaptar por completo à vida austera de descalço; apesar de suas excelentes qualidades de inteligência e coração, não parecia ser esse o homem destinado a pedra fundamental da Reforma.
Por aqueles dias apareceu no convento de Santa Ana de Medina um frade novo, inteligente, discreto, muito fervoroso, mas um tanto pequeno de corpo; tinha apenas 26 anos e andava concluindo os estudos na Universidade de Salamanca: era Fr. João de Yepes.
A Santa Madre mandou-lhe dizer que lhe queria falar à grade da clausura das Descalças. Lá foi ter com a Reformadora o jovem universitário. Conversaram sobre o mesmo tema, expondo-lhe Madre Teresa, pormenorizadamente, seus planos de Reforma. Será este o homem providencial escolhido por Deus para pedra fundamental do edifício? – dizia de si para si a Reformadora, quando lhe falava, fitos seus grandes olhos na fraca silhueta daquele homem, que já tinha qualquer coisa de grande.
Conta-lhe a Madre Teresa a vida reformada que levavam as Descalças, sua quase contínua oração, jejum, penitências, afastamento dos seculares, toda a austeridade que queria implantar nos mosteiros da Reforma.

Frei João sorri: Isso é pouco, queria mais – diz. Mal termine no ano próximo, os estudos teológicos, já tenho licença dos meus Superiores para ir para cartuxo.
Mostrou-lhe, então, a Santa Madre a glória que daria a Deus, se se reformasse dentro da Ordem Carmelita sem necessidade de ir procurar fora o que tinha dentro da sua casa. Frei João fita a Madre Teresa, através da grade de ferro, como para lhe penetrar as intenções e, de novo sorri... Sim, sim, está bem – replica o jovem Carmelita. Concordo plenamente e aceito, mas ponho uma condição: que não haja demoras.
As Descalças de Medina estavam, naquela altura, na hora do recreio, depois da refeição do meio-dia. Chegou toda radiante a Reformadora e disse-lhes assim: Oh! minhas filhas! Já tenho, para a reforma dos nossos Padres, frade e meio.

Qual seria o meio frade? Porventura Frei João, pequeno no físico, mas grande, gigante no espírito, que satisfazia por completo os desejos e exigências da Madre Teresa para levar a cabo a obra ingente da Reforma, ou Fr. António de Herédia, bela figura de homem, de maneiras polidas, com nome feito na Ordem e os seus 58 anos... que não satisfazia completamente à Madre Teresa? Seja como for, a verdade é que estes dois frades foram os primeiros filhos espirituais da Santa Reformadora, os pilares da Ordem de Carmelitas Descalços fundada por Santa Teresa de Jesus. O P. António, que morrerá com 91 anos, passando 32 na Reforma Carmelita a ocupar sempre altos cargos, vai assistir aos últimos momentos da vida preciosa de Santa Teresa no Carmelo de Alba de Tormes (1582), e recolherá também o alento final do futuro Doutor da Igreja, S. João da Cruz, no convento dos Descalços de Úbeda, em 1591.

*

Medina del Campo, Agosto de 1567.
Frei João de Yepes ou de S. Matias – era este o nome de S. João da Cruz, quando vivia entre os calçados – está com a Madre Teresa e as religiosas no locutório do Carmelo. Pode dizer-se que ele anda estes dias a fazer com elas a aprendizagem da vida reformada que, por sua vez, ensinará aos descalços quando for Mestre de noviços e Superior. Conversam na intimidade das almas santas. Do lado de lá da grade de ferro, a Santa Reformadora e suas filhas; do lado de cá, Frei João.
Mas, em determinada ocasião, a pedido da Santa Madre, aparece-lhes vestido de Descalço... pés nus, hábito curto e pobre, de estamenha de cor castanha, a mais ordinária. O burel foi talhado pela própria Madre Teresa e costurado pelas monjas. Nunca ninguém tinha visto um Carmelita com um hábito assim... É o primeiro Descalço que aparece no mundo... Dir-se-ia que é a imagem viva do homem contemplativo e penitente. O mundo, os anjos e os homens assistem, maravilhados e edificados a este espectáculo de grandeza moral inegável.
Passam alguns meses. A Santa Madre segue, na companhia de algumas freiras, para a fundação do Carmelo de Valladolid, como já vimos, e quer que as acompanhe Frei João, para que, na ausência do Capelão, P. Julião de Ávila, lhes celebre a Missa, as confesse e faça práticas. Temos aqui, na cidade do Pisuerga, a grande Reformadora, confessando-se e tratando as coisas do seu espírito com Frei João de S. Matias, que apenas contava 26 anos; tão prudente, fervoroso e adiantado na vida reformada o encontrou Santa Teresa que resolveu mandá-lo sozinho para Duruelo arrumar a desmantelada casa ou casebre, que havia de ser, no mundo, o primeiro convento de Carmelitas Descalços.
Teve de ir para lá só, porque o P. Fr. António de Herédia não tinha ainda sido dispensado do múnus de Prior de Santa Ana de Medina. Saíra para Duruelo nos últimos dias de Setembro de 1568, levando fixas na sua memória todas as recomendações da Santa Reformadora, para dar alguma forma de mosteiro àquela desconfortável casa que lhes doara D. Rafael Mejia Velázquez, grande benfeitor da Ordem e admirador da Santa Madre.
Duruelo era um lugarejo quase ermo, situado na província de Ávila, distante uns 40 kms de Valladolid, ao pé da rica e progressiva vila de Bracamonte. Tinha apenas 20 fogos.
A tal casa para convento de frades não era mais que a humilde moradia do caseiro de D. Rafael, que cultivava aqueles terrenos. Já a conhecia a Madre Teresa, porque já a tinha ido visitar propositadamente com o P. Julião de Ávila e outras pessoas amigas. Achou-a adaptável ao fim a que se destinava, mas sem nenhum conforto. Porém, como Fr. António e Fr. João tinham grandes desejos de penitência, não hesitou em aceitá-la.
Lá esteve Fr. João dois meses dirigindo os trabalhos como arquitecto e mestre-de-obras, transformando em mosteiro de Descalços aquela casa que Santa Teresa chamou em frase lapidar “Presépio de Belém”. Quer dizer; não tinha mais conforto que a lapinha de Jesus em Belém.

As dependências eram estas: uma sala, logo à entrada da porta, que Fr. João destinara a Capela; à direita de quem entra, um quarto tão estreito e baixo que mal se podia estar nele de joelhos, e que serviria de coro; à esquerda, um outro aposento que, feitas algumas divisões, daria para celas dos frades, com uma pequenina janela que dava para o Santíssimo Sacramento, e mais uma cozinha rural. Isto é tudo. De resto, só se viam por todos os cantos cruzes de madeira, de papel, de todos os tamanhos e feitios, e caveiras humanas.
Limpo o pobre conventinho e munido de utensílios e apetrechos de sacristia oferecidos pelas Descalças de Medina, inaugurou-se a fundação, e começou com todo o rigor a vida reformada no primeiro Domingo do Advento, 28 de Novembro de 1568, com a presença do Provincial, Fr. Alonso González, que rezou a Missa de comunidade. Finda a Missa, Fr. António de Herédia, que tinha chegado na véspera, Fr. João de S. Matias e mais Fr. José, que era ainda diácono, todos carmelitas descalços, muito sensibilizados e de joelhos aos pés do Prelado, renunciaram solenemente à mitigação da Regra concedida por Eugênio IV, prometendo observar a Regra Primitiva da Ordem dada por Santo Alberto, Patriarca de Jerusalém, aos monges do Monte Carmelo e confirmada por Inocêncio IV. O resto e as palavras do Provincial, amigo de toda a reforma, facilmente se podem adivinhar... Não houve mais.
Cerimónia esta singela, sem nenhuma pompa, mas cheia de significado e de enorme projecção espiritual na Santa Igreja. Era nada mais nada menos que o reflorir do Carmelo entre os frades da Ordem de Nossa Senhora.
A Santa Reformadora não assistiu à cerimónia inaugural, mas sentia-se feliz, por ver realizado o seu sonho. A vida dos filhos de Santa Teresa, a partir desta data memorável, foi um misto de oração e penitência, num ambiente de solidão e silêncio. Andavam literalmente descalços, sem alparcatas, que a Madre Teresa já tinha concedido às religiosas, como medida de prudência. Erguiam-se todos os dias à meia-noite para rezar Matinas no coro, perante o Santíssimo Sacramento, ficando muitas vezes em oração até ao romper do dia, em que de novo reunia a Comunidade para as Horas Canónicas. E quantas vezes lhes chovia ou nevava sobre os hábitos, naquele presépio com aparência de convento!
Jejuavam de 14 de Setembro até à Páscoa, todas as sextas-feiras, nas Têmporas do ano, e ainda em muitas vigílias de grandes festas, designadamente de Nossa Senhora. A abstinência de carnes não tinha quebra.
Tomavam disciplinas uma, duas, três vezes por semana. Oravam, meditavam, estudavam a Sagrada Escritura aqueles primitivos descalços e ainda iam pregar a palavra de Deus por aquelas redondezas, vivendo assim, plenitude, o duplo espírito do Carmelo, como lhes indicara o Superior Geral da Ordem ao conceder licença para a fundação. Por mais de uma vez foram pregar às freguesias vizinhas os frades de Duruelo e voltaram para o mosteiro, cansados, sem terem tomado coisa alguma, porque não queriam que ninguém os recompensasse, pois tudo faziam unicamente por Deus. Vida penitente, como a dos antigos moradores do Monte Carmelo, a dos filhos de Santa Teresa, em Duruelo. Tão penitente que, ao passar por lá a Reformadora em Fevereiro de 1569, a caminho de Toledo, recomendou encarecidamente aos Descalços que moderassem com prudência os rigores das suas penitências, para não perderem a saúde ou afastarem as vocações que podiam aparecer. Os filhos responderam à Mãe que timbravam em copiar o mais perfeitamente possível, na sua vida reformada, Jesus Cristo Crucificado, cujo nome eles reproduziam e lembravam nos seus apelidos. Com efeito, o velho Prior de Medina quis chamar-se, no Carmelo Reformado, Fr. António de Jesus, e assim será conhecido entre os Descalços; Fr. José, o diácono, de Cristo; e Fr. João de S. Matias, esse trazia a ideia da crucificação com a sua cruz, pois, propositadamente escolheu chamar-se Fr. João da Cruz. E a história diz que os três Descalços souberam viver e realizar maravilhosamente seus respectivos nomes, e fazer, juntos, um Jesus Cristo Crucificado.
Seria diminuir a verdade dos factos se pretendêssemos ocultar aqui a impressão salutar de devoção que causara a Santa Teresa e às pessoas que com ela foram visitar Duruelo a contemplação do conventinho e igreja. “Logo que entrei, fiquei surpreendidíssima ao perceber o espírito que lá tinha posto Nosso Senhor. E não só eu, como também os dois comerciantes que tinham vindo comigo de Medina, pessoas amigas, não podíamos deixar de chorar. Tantas cruzes, tantas caveiras humanas!”.
Antes de sair de Duruelo, o P. Provincial nomeou Fr. António de Jesus Vigário da comunidade e, crescendo mais tarde o número de frades, resolveu elevar aquela residência dos Descalços à categoria de Priorado, escolhendo Fr. António para Prior do convento, e Fr. João da Cruz para Subprior e Mestre de noviços.
Como o sítio de Duruelo era bastante insalubre e os religiosos começavam a adoecer, tiveram de mudar para a próxima vila de Mancera, onde era muito conhecido e estimado o Padre Prior Fr. António de Jesus, pelos seus sermões e trabalho apostólico. Realizou-se a trasladação da Comunidade processionalmente com toda a solenidade em 11 de Junho de 1570, acompanhados os Descalços pelo clero e fiéis. Nesta data eram já 15 ou 17 os membros da comunidade Carmelita, rezam os anais do convento. O P. Fr. António, pregador de grandes recursos e fino recorte literário, e S. João da Cruz continuavam a espalhar por aquelas planícies castelhanas a boa semente do Evangelho, realizando grandes conversões, principalmente nos arredores de Mancera onde o Prior do Convento tinha pregado os sermões quaresmais em 1569.

Os Conventos dos Descalços iam aumentando, bem como os das Descalças, com grande consolação para a Santa Reformadora, a quem disse um dia Nosso Senhor que veria florescer esta Ordem, como nos conta nos seus relatórios a Beata Ana de S. Bartolomeu, secretária e enfermeira dedicada de Santa Teresa.

Quando ela redigia em Toledo o capítulo 13 do livro das “Fundações”, isto é, entre o ano de 1577 e 1580, diz a própria Santa que havia já fundado dez mosteiros: Duruelo, Pastrana, Mancera, Alcalá de Henares, Altamira, La Roda, Granada, La Peñuela, Sevilha e Almodóvar del Campo. E levando em conta que este último foi inaugurado em 1575, podemos concluir que, no breve lapso de sete anos – tinha começado a Reforma dos frades em 1568 – foram fundados estes dez mosteiros de Descalços. Deus Nosso Senhor, como se vê, não podia abençoar melhor a seara da Madre Teresa.
Vêm aqui a propósito as suas palavras: “Estas casas, na sua maior parte, não foram fundadas por homens, mas foi a mão poderosa de Deus que as fundou”.
Como os Descalços, nos começos da Reforma, não tinham constituições e em cada convento se procedia como bem entendia o Superior, em 1576, o Comissário Apostólico, Frei Jerónimo Graciano, redigiu umas Constituições. No dizer de Madre Teresa, era natural que os reformados interrogassem amiudadas vezes a Reformadora sobre o que se devia praticar nos seus conventos. Não é fora de propósito notar aqui que o P. Fr. António de Jesus, ocupando quase sempre altos cargos na Reforma, nunca fora da plena confiança de Santa Teresa como S. João da Cruz, o P. Jerónimo Graciano e outros insignes Descalços. Tinha muitos pergaminhos, e parece que até chegou a ser indigitado para bispo, mas nunca o chegou a ser, ainda que não lhe faltassem grandes predicados, vasta cultura, vida interior e um fino e impecável porte social.
Durante a terrível tormenta que desabou sobre os Descalços e a Santa Reformadora (1577-1580), foi a própria Santa Teresa quem defendeu com todo o desassombro os seus frades, levando a causa ao conhecimento do próprio Rei de Espanha, D. Filipe II, que logo acudiu em sua defesa. Felizmente, tudo terminara com o triunfo estrondoso da Madre Teresa e de seus filhos ao conceder-lhes o Papa Gregório XIII absoluta independência dos Superiores Calçados (1580), como já vimos.
Um dia em que Santa Teresa pedia encarecidamente a Nosso Senhor, no convento de S. José de Ávila, o progresso espiritual da sua Reforma, diz o autor de “Serafina do Carmelo” que teve a Santa Reformadora um êxtase e o Senhor lhe fez saber quatro preceitos que deviam observar os monges desta Ordem: primeiro, que houvesse conformidade entre os Prelados; segundo, que os conventos tivessem poucos moradores; terceiro, que os frades e freiras tratassem pouco com os seculares; quarto, que se ocupassem mais de obras do que de palavras. Ficaram assim superiormente traçadas as linhas gerais do espírito que devia informar a Reforma do Carmelo, no correr dos séculos.

*

Santa Teresa era de um zelo verdadeiramente apostólico; tinha mesmo alma de apóstolo. Já em pequenina, deu provas disso quando fugira da casa paterna, rumo à Moirama. Por isso costumava dizer que mil vidas daria ela por uma das muitas almas que se perdem; e foi justamente para ajudar os que defendem a Igreja que ela fundou os seus Carmelos.
Ora, seus filhos não podiam deixar de andar santamente contagiados desta sede de almas. É esta, sem sombra de dúvida, a razão por que, já no Capítulo da Separação, celebrado em Alcalá de Henares (1581), em que foi eleito Provincial o P. Jerónimo Graciano – o que muito alegrou a Santa Madre Teresa – triunfou a ideia de auxiliar as Missões Católicas, aventada e defendida pelo Provincial contra uma certa corrente de opiniões chefiada pelo P. Dória que sustentava a preponderância, na Reforma, da vida contemplativa, com quase exclusão da vida apostólica, ou, pelo menos, da obra das Missões.
A Ordem Carmelita é contemplativa, é certo, mas não deixa de ser também apostólica. Pelo menos assim a concebeu a sua Santa Reformadora.
Era em 1560... O protestantismo grassava na Europa como um flagelo. Lutero deformara; Teresa reformara. Teresa de Jesus, diz Edgard Luinet, foi o verdadeiro adversário da Reforma protestante. Fundou uma Ordem para combatê-la pela acção, pelas lágrimas, pelo amor; numa palavra, pelo apostolado.
Santa Teresinha, com a nítida visão de que o Espírito Santo a dotara, desde a infância, acerca das virtudes sobrenaturais, assimilara perfeitamente o espírito da Fundadora do Carmelo. Sabia que, alistando-se entre suas filhas, entrava na carreira apostólica. “Vim para salvar almas e, sobretudo, para orar pelos sacerdotes”, disse no exame canónico que precedeu a sua profissão. Além do mais, preside hoje às Missões Católicas uma Carmelita Descalça, a própria Santa Teresinha, na qualidade de Padroeira escolhida e proclamada pela Santa Igreja, tal qual como S. Francisco Xavier, o que quer dizer que a Santa Igreja considera a Ordem de Santa Teresa como apostólica, pois, de outro modo, não escolheria um dos seus membros para zelar os interesses das Missões no mundo inteiro. Por isso, o P. Jerónimo Graciano, formado na escola da Madre Teresa de Jesus com quem privava mais do que ninguém, adiantando-se três séculos, com alta e nítida visão da realidade, já em 1582, 1583 e 1584 mandou, sucessivamente, três levas de missionários carmelitas para Angola e Congo, das quais, infelizmente, só a terceira conseguiu aportar às costas da África Equatorial. O Ven. P. Francisco do Menino Jesus, alma e chefe da terceira expedição, se dermos crédito ao testemunho de velhos manuscritos, chegou a baptizar ele só mais de 100.000 pagãos.
Em Sumatra, ilha de Java, foram martirizados no século XVIII dois ilustres missionários do Carmelo: o P. Dionísio da Natividade (francês) e o Irmão Redento da Cruz (português), beatificados em 1900 por Leão XIII.
Veja-se o que escrevemos algures sobre “Missões Carmelitas”.
Nos centros de Missões Carmelitas vegetam hoje 9 milhões de infiéis confiados pela Santa Sé ao zelo dos filhos de Santa Teresa de Jesus.
Vamos encerrar este longo capítulo com chave de ouro, pois outra coisa não representam estas notáveis palavras do imortal Pio XI sobre o zelo apostólico dos Descalços: “De forma alguma queremos que passe despercebida a influência que exerciam os Carmelitas Descalços na Congregação da “Propaganda Fide” para cuja fundação muito concorreram, não só com os seus conselhos como também com os seus trabalhos e esforços junto desta Sede Apostólica, como afirmam as actas de Clemente VIII, Paulo V e Gregório XV”.

[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]

DOMINGO VIII DO TEMPO COMUM


Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há-de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro. Por isso vos digo: «Não vos preocupeis, quanto à vossa vida, com o que haveis de comer, nem, quanto ao vosso corpo, com o que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestuário? Olhai para as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem recolhem em celeiros; o vosso Pai celeste as sustenta. Não valeis vós muito mais do que elas? Quem de entre vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar um só côvado à sua estatura? E porque vos inquietais com o vestuário? Olhai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam; mas Eu vos digo: nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como um deles. Se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada ao forno, não fará muito mais por vós, homens de pouca fé? Não vos inquieteis, dizendo: ‘Que havemos de comer? Que havemos de beber? Que havemos de vestir?’ Os pagãos é que se preocupam com todas estas coisas. Bem sabe o vosso Pai celeste que precisais de tudo isso. Procurai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo. Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã, porque o dia de amanhã tratará das suas inquietações. A cada dia basta o seu cuidado». [Mt 6, 24-34]

Alegra-te, somos uma gotinha!

Somos uma gotinha.
Não somos mais que uma gotinha.
Mas uma gotinha fértil.
Alegra-te, porque somos uma gotinha fértil.
Vamos carminhado, vamos rezando.
Uma gotinha não dispensa as outras.
Como é bom rezarmos juntos, carminharmos juntos.
Juntos velarmos pela sementinha dos demais.
Juntos rezarmos pelos outros, pelo mundo.
Por nossas famílias, pela nossa Igreja.

Somos uma gotinha, nada mais.
Mas Deus ama-nos assim.
Por que temer,
se somos amados por Ele assim tal qual somos.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Talvez devêssemos saber

Justin Bieber é o cantar adolescente do momento. Numa revista portuguesa que traduzia um artigo de Jon Ronson (do “The Guardian”) lia-se:
“És judeu?”, pergunta-me Justin. “Sim”, respondi-lhe. Justin recita então as linhas de abertura da “Shema” – a oração judia da manhã e da noite – dizendo-as sílaba a sílaba na perfeição. E faz uma pausa. “O cristianismo começou por causa de Jesus ser judeu”, disse. “Respeito a fé judaica”, acrescenta. Justin é um cristão praticante. “Rezo duas a três vezes por dia. No fim do dia, leio sempre um pouco da minha Bíblia. O meu tutor é cristão, por isso nas aulas particulares as vezes estudamos versículos da Bíblia”, revela.

Os catequistas deviam saber disto. Algumas crianças e adolescentes leriam a Bíblia com mais gosto sabendo das práticas do ídolo. Para mais, parece que Justin Bieber é católico (discute-se em imensos sítios qual a confissão a que está ligado, mas prevalece a católica).
Já agora, a “Shema” é o conjunto de versículos de Deuteronómio 6,4-9, que começa assim (segundo a minha Bíblia): “Escuta, Israel! O senhor é o nosso Deus; o Senhor é único! Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças”.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Palavras Finais da Carminhada em Âncora

Descobrimos o oceano que faltava:
O Mar da Alma!
DOM /SEG/TER /QUA/QUI /SEX /SOL /DOM. Sim acertou, há um erro. SOL não tem nada a ver com o resto, ou, se calhar, até tem. É que os outros dias estão com nomes de dias porque foram dias de chuva. O dia do sol foi o nosso dia. E que belo dia! QUE BELO DIA FOI O SÁBADO DA NOSSA CARMINHADA!
Assim sendo, também poderia ter escrito: CHU/CHU/CHU /CHU /CHU/CHU /SAB /CHU. E assim também era verdade.
As agendas mandavam-nos correr para Vila Praia de Âncora, porque ali nos esperava um punhado de irredutíveis, que, como nós, passaram os dias de nariz no ar, cheirando o tempo, adivinhando se… se haveria bom tempo para carminhar.
E depois de tanta espera e quase desespero houve muito bom tempo. Passamos dias a fio perscrutando o chumbo das nuvens, e das nuvens não vinha mensagem alguma.
Restou esperar. E prepararmo-nos para o que desse e viesse. E estávamos preparados, só que não foi preciso.
Na noite anterior, sim, naquele pedacinho de tempo em que um dia vira de um para o outro, telefonam-me: Que fazemos? Esperamos, respondi. E se chove, insistiu? Se chove é porque Deus quer!, se tivermos sol é porque Ele assim quererá! Seja o que Deus quiser. Que podemos nós fazer senão esperar louvá-lO do jeito que Ele quer? Vamos esperar para ver.
E fui para a cama.
Acordei a horas. Hesitei levantar-me por não querer nem ver o tempo. Tal o medo. Por fim o relógio impôs-se. Era hora. Mas não abri a janela antes do banho. Só no fim, e… havia nevoeiro. Nevoeiro? Que quererá isso dizer? Será que, será que – perguntei-me entre o adormecido e o surpreendido –, será que chove em dias de nevoeiro?
O pequeno-almoço foi mesmo pequeno. Lá fora esperavam ovelhas. Partimos com esperança. Parece que Deus abrira uma janela. O Zé ao volante aproximava-nos lentamente de Âncora, que até fica perto. E aquela serena aproximação era prenúncio de bom tempo que nos surpreendeu antes de Carreço.


Chegamos, rezamos e partimos
Chegamos a Âncora a tempo de acordar os ancorenses. Que chegaram logo.

E o restante rebanho depressa chegou todo: Viana, São Salvador da Torre, Paços de Gaiolo, Moinhos da Gândara, Gafanha da Nazaré, Caíde de Rei, Braga, Ávila e Âncora. Não faltou ninguém dos que puderam vir. Outros logo virão, como o bom tempo! Éramos mais de oitenta!
Feitas as apresentações rápidas e os avisos (in)dispensáveis, partimos. Partimos, não! Não partimos sem rezar, sem encomendar o dia à Senhora do lugar, a Senhora da Bonança. (Afinal terá sido Ela que nos socorreu, habituada que está a dar mar chão aos pescadores!) E como ninguém deveria rezar sozinho, como ensina a Santa Madre, lá rezámos todos juntos: «Ó Deus, tu és o meu Deus; ansiosamente te busco!»
Ansiosamente partimos em direcção ao Âncora. Sim, aí mesmo onde o Atlântico o bebe num pequenino e delicado cálice!
Olhem que existem poucas imagens mais humildes e tão poderosas! O rio Âncora vem lá das Argas – sim, muito acima de São João d’Arga! –, desce baixando toda a serra sem encorpar muito, para muito, muito, mas mesmo muito mansinho (e estamos no Inverno!) entrar no mar! Que beleza de rio a entrar sorrateiro no mar!
Saímos, pois, da Capela da Senhora da Bonança. O dia claro animava-nos. Apontámos ao caminho mais longínquo, sinal de confiança no tempo e nas temperaturas. Cruzamos três ou quatro ruas. E eis que oitenta inesperados miúdos impressionam os pacatos comerciantes, porque, já nem os partidos chamam tantos!
O Bruno levava na mão o cajado que ninguém passa; a Alexx, a Cruz das Gotinhas. O Miguel três faixas: cabeça e antebraços. Faltaram as das pernas, como prometera em Braga. Não por isso certamente, mas lá que caiu, caiu e lesionou-se… nas canelas e joelhos! Mas ó rapaz, então não sabias ter posto as duas faixas que faltavam!
Entramos na pequena praia cheia de lixo, lixo que o rio trouxe montanha abaixo e que o mar devolvendo recusou! Então, não é que o mar bebe o rio, mas bebe-o como quem cumpre um ritual de purificação. E não para o tragar ou anular! Cruzámos o lixo que um homem amanhava recolhendo a lenha mais grossa para secá-la! E chegamos à Prainha onde o mar lambia mansamente o rio. Desenhamos a Gotinha na areia e, depois das fotos, das muitas fotos!, rodeámo-la e rezamos. E rezamos juntos e com Teresa, que, como nos avisara, não devemos carminhar sozinhos: «Que ninguém reza por medo, antes por gosto.» É Teresa que o diz, que no-lo disse.
E depois ficamos a olhar o mar, a olhar o maaar, a olhar o maaaaaaaaaar. A ouvir o pio fininho do rio e a olhaaaar o maaaaaaaaaaaaaaaaaar! Ooooooooooooo mar!
Da outra margem, desde as tascas e esplanadas, também nos viam. Mas nós não víamos que desde lá nos viam tolinhos!


Depois da praia a marginal
Deixámos a praia, chegámos à margem e seguimos pela marginal. Foram uns curtos quilómetros. Passámos pelos bares, pelas tascas, pelas esplanadas. Passámos pela Lota, pelo Portinho, pela nova Capela, pelo Forte. Entrámos pela via peatonal que nos aguardava garbosa, e sempre à beira-mar metemos por um caminho selvagem e depois por outro mais selvagem e por um troço de rebos bem redondos que dificultavam a carminhada. (E não é que alguém gostou de caminhar sobre eles?) Chegámos por fim à Capela de Santo Isidoro e ali diante do olhar do Santo Doutor e padroeiro da Internet – se não me engano – parámos e silenciámos. Bem parar parámos, silenciar é que quase não. Mas por lá ficamos a esmo, dispersos nas fragas mais que batidas pelo mar! Agora tinham-nos elas ao colo a nós, meninos e jovens, com ânsias e sonhos, com salmos e Teresa no coração. Passado um tempo – houve quem quisesse mais, mas a manhã ia adiantada – partimos de novo. Agora, para a visita a Santo Isidoro, uma capela inesperada, despojada e bela. O santo recebeu-nos no seu seio. E ali aprendemos o silêncio. Aprendemos que tantos e tão juntos podíamos fazer um diálogo de amigos em silêncio.
E fizemos.

De novo pelo centro de Âncora

Fizemo-nos de novo ao caRminho. E por outro caminho voltámos ao centro de Âncora. Aqui os das tascas pegaram nas bicicletas pela mão e vieram ver a seita! Admirados com surpreendente «ranchinho de gente nova» vieram perguntar-nos quem éramos e porque levávamos uma Cruz connosco. A Sónia Ferraz fez de porta-voz. E bem. Ficaram satisfeitos com a resposta dela. E lá fomos. E ala, que se faz tarde e o prémio é para quem se mete ao carminho!
Fomos andando, andando. Passámos de novo pela Capela da Senhora da Bonança em direcção à parte mais rural da localidade. E subimos, subimos até ao secular calvário que Âncora tanto venera e de que tanto se orgulha.
Depois de subirmos uns largos minutos lá aparece a colina com um bem proporcionado Calvário. Passamos por ele sem muito olhar, é verdade. Porque a verdade é que era já tarde e impunha-se um assalto às lancheiras que cheias nos aguardavam. E lá fomos deixando as rezas e o turismo para um pouco mais tarde.

Um almoço bem almoçado
Abancámos no monte rico em sombras e sol – e como andávamos todos sedentos de sol! – entre a Capela do Calvário, a Capela da Senhora de Lurdes, um anfiteatro ao ar livre e a enorme Cruz lá do alto reinando sobre nós.
O almoço foi descansado, com tempo. Saboreado a gosto. Porque existem prazeres a que é preciso dar lugar, e depois de tantos dias de chuva e de encarceramento em salas de aula e gabinetes de trabalho, como bem sabe o ar puro, o sol quente, a erva fresca!
Gostei muito daquela refeição – e quem não gostou! Pela serenidade, pela paz, pela calma, pela partilha, pelo muito tempo para comer! Sem stress. E também isto é de grande valor e ajuda muito à amizade e à oração. Percebê-lo é perceber o êxito das carminhadas.
Entretanto, chegou a Beatriz que nos veio trazer os pais. O número cresceu, portanto.
Entretanto, uns e outros, rodando por aqui e por ali fizeram apressar o relógio. Motivos não faltavam: Tudo ali nos falava muito: o monumento do Imaculado Coração de Maria, os cruzeiros de Bulhente e de São Roque, o São Salvador do Mundo e a sua Capela, a Senhora das Dores, a inesperada Capela de Nossa Senhora de Lurdes, a natureza, o sol!

Bem junto à Cruz

Depois, como se tivéssemos combinado, lá nos fomos juntando sem faltar alguém. E daí, desde um enorme balcão que nos mostrava todo o mar de Âncora subimos ao ponto mais alto da carminhada até junto duma alta cruz que para lá nos chamava. Subimos, subimos. E a Beatriz ao colo do pai.
Só parámos bem lá cima, bem no alto, bem junto da cruz, para rezar novamente com Teresa, que nos disse «que quem começa a subir o monte da perfeição nunca caminhará sozinho.» E era verdade, duplamente verdade, visivelmente verdade.
A vista era maravilhosa, o corpo restabelecido e confortado rezou a gosto. O sol, o calor, a erva fresca, o ar puro, a vista fantástica, as mimosas floridas, o azul do céu, o mar sereno, os amigos, as amigas. Tudo, tudo ajudava a rezar, a dar graças: «Obrigado, Jesus, porque fazes nascer e crescer em nós o teu amor.»
Permanecemos ali um bom bocado. Que eu apreciei e gozei bem. Mas como ninguém era dali, lá tivemos de descer. De botar os pés ao caminho a fim de nos aproximarmos do fim.


Junta ao Dólmen
Descemos suavemente o monte, percorremos um par de ruas já percorridas, para um pouco ao lado nos determos no monumento nacional do Dólmen da Barrosa – a saber, sete pedras bem imbrincadas que suportam uma laje de 12 toneladas! Crê-se que a construção é datada de há mais de três mil anos antes de Cristo!
Foi aqui celebrado um bom momento. Os dólmenes são monumentos funerários cuja construção visava a sepultura de chefes e guerreiros notáveis.
Reverentes, homenageámos, portanto, os nossos avós que nos despertaram para a crença na imortalidade e nos despontaram a aurora do além.
A história atravessa o inesperado das nossas carminhadas, e passar pelo Dólmen da Barrosa foi um achado único. O círculo que o abraçou foi duma perfeição tão plena, como agradável foi aquele silêncio aos que agora são silêncio para nós, e festa entre eles.

Rumo à igreja mãe

Saímos em silêncio daquele lugar sagrado. E já bem longe daquele lugar é que se começaram a ouvir as primeiras vozes. O respeito é bonito, sim senhor.
Não tardaria muito e chegávamos à matriz, a igreja mãe de Âncora, que, até quase ao século XVIII se achava «situada no meyo da frequezia».
O tempo era basto e suficiente, para quê correr. Mas a Maria João impôs um curto intervalo de trinta minutos. Tempo suficiente para rematar conversas, beber um sumo, descansar as pernas e o corpo, alindar a igreja.
À entrada aguardava-nos envolto em silêncio solene e grave o Pároco João Martins Baptista, que nos acolheu muito afavelmente, nos saudou calorosamente, nos apresentou a sua freguesia, nos convidou a entrar e connosco concelebrou a Eucaristia.
E entrámos, mas não logo logo. Só a tempo de cumprir as ordens da Maria João.


Descobrimos um novo oceano
A Missa começou a horas, presidida pelo Frei João Costa. E cantada por nós num coro de quase mil vozes. Como de costume demorou muito, não o parecendo de todo. À homilia falámos muitos de nós, partilhando a experiência recém-vivida. Uns mais faladores que outros todos se desembaraçaram. Depois veio o Frei João, que, a seu jeito, já nos tinha chamado mal-educados. Calma, calma, que ele só queria dizer da nossa pouca inclinação para o silêncio e a interioridade, para a busca e o encontro com o Amigo no mais profundo centro de nós. Também nos lembrou a beleza do rio Âncora a entrar no mar, para nos dizer que se somos como um rio que carminha, e que o mar é afinal o imenso Deus maior que milhões de mares vezes mil milhões de mares! E que esse Deus vive dentro de nós, num oceano que se chama alma. E então, com palavras inesperadas, umas, e apaixonadas, todas, desafiou-nos a como o Âncora entrarmos confiantes por esse mar adentro, a ir entrando, entrando, entrando, passando o vão duma porta e depois os corredores todos até passar as sete portas e chegarmos ao centro mais centro onde está o Amigo e Senhor nosso, o prémio dos prémios.
Disse isto e mais. Muito mais. Por isso não sei se ele concorda como o resumo – ele saberá. Mas disse mais ou menos isto e ainda nos contou uma história – que ele terá de contar-nos outra vez; e a anedota duns homens que empurraram o Farol de Ílhavo. E tudo isto numa Missa. (Por alguma razão elas nunca mais acabam!)
O apelo ficou feito. Falta agora saber quem se anima a caminhar por esses mares (quase) nunca dantes navegados, quem se atreve a descobrir caminhos novos que só o Espírito pode verdadeiramente ajudar a descobrir.
A Missa terminou a dançar a Estrela Polar à volta do Altar, e até o João, outro João, o mais velho João de todos dançou. Distribuíram-se recordações, uma belas recordações ancorenses que valem um valiosíssimo prémio tal o amor com que os nossos amigos as fizeram. São umas gotinhas azuis com uma âncora e as três estrelas do nosso Escudo do Carmo. Engenheiros, hein!
A igreja ficou vaga a tempo de às sete e quinze receber a comunidade paroquial para a Missa Vespertina.
A Maria Emília teve ainda tempo para se nos revelar como leiga consagrada e de nos desafiar para a experiência dum retiro jovem, em Fátima. A ver vamos. O convite ficou feito.
Seguiram-se as despedidas, mais despedidas e mais despedidas. As que iam para longe, mais rápidas. As de perto, mais distendidas. Comeram-se as últimas sandes, o que é um bom sinal. Sinal de que o Carmo Jovem carminha bem, desgasta e desbasta muito e se alimenta melhor. E ala que se faz tarde! Tão tarde que já estamos com saudade da próxima. Em Paços de Gaiolo.

Porque esperas para nos dar novas, Maria João? Vamos a isso, que o difícil é começar…

GOTINHAS (+)
O sol – Há quem tenha dito mais que uma vez: «Que pena sermos tão poucos!», e afinal éramos quase noventa! «Que pena outros não aproveitarem!», e nós chupámos tudo até ao tutano! E houve quem tivesse recebido chamadas a lamentar-se por não ter tido coragem de vir connosco!
Foi um dia brilhantemente fantástico, como o sol!

Dez anos - Havia quatro meninas de dez anos: A Bárbara de Braga, a Inês de Moinhos, a Margarida de São Salvador, a Rita de Darque. Dez anos são poucos anos, mas elas são mulheres de garra e provaram-no ao chegar na frente e gostar muito de aprender.

Carlitos - A Célita e o Carlitos vão ter mais um bebé. Esperam um Carlitos, mas venha o que vier é bem-vindo ao Movimento, acha o pai e nós também. O Carlitos antes do Pai Nosso ensinou-nos o que é ser pai: é ser frágil! É ficar-se muito frágil, antes do nascimento, durante e depois. Um abraço ao Carlitos que por estes dias anda triplamente frágil. E, parabéns.



PINGOS (-)
A queda – Ninguém viu, mas o rapaz escorregou na erva verde e esfolou os joelhos. Ainda andou uns quilómetros, mas ao passar por casa foi curar-se. Depressa deixou as boxes para se nos juntar e desfrutar do resto do dia. Ainda bem, mas sem sofrer era bem melhor.

A música – Não há no Movimento quem toque, nem quem queira tocar-nos o coração com o júbilo e a exultação da música. Mas houve harmonia e serenidade, e só isso é tão saboroso como a música. Graças a Deus.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Fotos da XVII Carminhada, Vila Praia de Âncora, 19 Fev '11

Dizem que foi um dia espectacular. E foi mesmo! A nossa sorte, como sempre, é ter Caíde de Rei connosco que vai pedindo ao padroeiro, S. Pedro, que nos dê o bom tempo. E para espanto de todos, principalmente de quem preferiu ficar em casa abrigado da chuva, o sol raiou todo o dia. Foi a XVII Carminhada, em Vila Praia de Âncora. Aveiro, Braga, Caíde Rei, Moinhos da Gândara, Paços de Gaiolo, Vila Praia de Âncora, Viana do Castelo, estivemos todos lá.
 Ficam algumas fotos (as primeiras) e em breve, aparecerá a crónica. Por falar nela, quem a quer fazer?


sábado, 19 de fevereiro de 2011

DOMINGO VII DO TEMPO COMUM


Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Ouvistes que foi dito aos antigos: ‘Olho por olho e dente por dente’. Eu, porém, digo-vos: Não resistais ao homem mau. Mas se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda. Se alguém quiser levar-te ao tribunal, para ficar com a tua túnica, deixa-lhe também o manto. Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, acompanha-o durante duas. Dá a quem te pedir e não voltes as costas a quem te pede emprestado. Ouvistes que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem, para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus; pois Ele faz nascer o sol sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos. Se amardes aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem a mesma coisa os publicanos? E se saudardes apenas os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito». [Mt 5, 38-48]

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A história continua...Santa Teresa de Jesus, cap XVI

XVI
ÚLTIMAS FUNDAÇÕES

Lindo dia de sol, o de 25 de Novembro de 1579! Tem chovido muito em Toledo e o vento Norte varre as nuvens. A Madre Teresa por ordem do Superior, Frei Ângelo de Salazar, deixa o mosteiro da cidade dos Concílios que lhe servira de cárcere durante três largos anos, e vai, agora acompanhada da irmã conversa Ana de S. Bartolomeu, a caminho de Villanueva de la Jara, aldeia da província de Cuenca, com 3.000 habitantes, onde pretende fundar mais um Carmelo.
O sol, depois da tormenta, parece-lhe mais belo, o ambiente mais amorável, as flores do outono mais formosas. Com beneplácito dos Superiores, descansa a Santa Reformadora dois meses em Malagón, enquanto se vencem as últimas dificuldades e tudo se apronta para a fundação, que será o décimo terceiro dos Carmelos por ela fundados.
A Santa Madre está agora melhor de saúde porque lhe fizeram muito bem, tanto ao corpo como à alma, os três anos de reclusão impostos pelo P. Geral da Ordem, mas está já bastante cansada, porque anda nos seus 64 invernos. Traz o braço esquerdo ao peito, pois reza a tradição que, empurrada pelo demónio, fulo por lhe haver tirado tantas almas, rolara, um dia, escada abaixo no mosteiro de S. José, em Ávila, na última ocasião que lá esteve. É por isso que agora a Santa Madre andará sempre acompanhada de Ana de S. Bartolomeu, alma simples e santa, que lhe prestará com toda a dedicação de filha, os serviços de enfermeira e secretária, ajudando-a, por vezes, até a redigir cartas.


Saíra, portanto, de Toledo na companhia desta sua enfermeira, para o mosteiro de Malagón por ela mesma fundado. Aqui se demorou Santa Teresa até ao dia 13 de Fevereiro, partindo nesta data para Villanueva de la Jara, nas vésperas da Quaresma.
Quis levar consigo, destinadas à nova fundação: quatro religiosas, duas de Toledo e mais duas de Malagón. Foi uma viagem verdadeiramente triunfal a jornada de Malagón a Villanueva de la Jara, pois toda a gente das aldeias saía à beira das estradas a ver a Santa Madre, cuja fama já enchia a Península.
O P. António de Jesus e o Prior dos Carmelitas Descalços de La Roda, Frei Gabriel da Assunção, acompanharam as monjas nesta jornada.
Conta-nos, no relatório desta fundação, a Beata Ana de S. Bartolomeu71 que, na povoação de La Roda, onde as fundadoras se detiveram três dias, foi preciso pôr polícia à porta da casa onde se hospedava Santa Teresa, porque o povo invadia literalmente as dependências todas para a ver e falar-lhe.


Entraram em Villanueva de la Jara nas primeiras horas do dia 21 de Fevereiro de 1580, que era o 1º Domingo da Quaresma, tomando-se nessa mesma data posse da nova fundação na ermida de Santa Ana e iniciando-se a vida carmelita descalça na casa-convento a ela anexa. Note-se que, apesar de ser pobre o lugar, Santa Teresa recusou-se a admitir rendas de qualquer espécie, confiando na Divina Providência que não abandona nunca os que servem a Deus com fidelidade.

*Ao findar o mesmo ano, 1580, realizou a Santa Reformadora uma outra fundação, a do mosteiro de Palência. Meteu ombros a este empreendimento a rogos do Sr. Bispo daquela diocese, D. Álvaro de Mendoza, ilustre Prelado que já conhecemos e que lhe era muito dedicado desde que tratara com ela mais de perto, quando Bispo de Ávila.
Tendo tomado posse do Bispado de Palência, em 9 de Fevereiro de 1578, e não se sentindo bem sem o conforto espiritual e exemplos de virtude das Descalças, pedira aos Superiores da Ordem a fundação dum Carmelo da Madre Teresa na sua cidade episcopal.
A própria Madre Reformadora quis ir inaugurá-lo pessoalmente, em atenção aos favores que dele havia recebido, quando da fundação do mosteiro de S. José de Ávila, no ano de 1562.
O dia aprazado para a inauguração do mosteiro e início da vida carmelita descalça em Palência, foi o dia 29 de Dezembro daquele ano, 1580, tendo chegado, dias antes, de Valladolid, onde estivera muito doente, mesmo em perigo de vida, por ocasião da epidemia de “influenza” que então grassava na Espanha72.
Esta fundação foi a que menos custou à Santa Reformadora. Tudo correu às mil maravilhas: licença do Prelado, compra da casa, escrituras, capelães, sustento das monjas, sem dissabores de nenhuma espécie. O Sr. Bispo, logo no dia da entrada, prometeu prover o Carmelo de quanto precisasse. A Santa Madre mostrava-se encantada com aquela gente palentina, em que via um como reflexo da Igreja primitiva na pureza da fé, nos costumes simples e morigerados do povo, na prática da verdadeira caridade cristã.


Volvidos alguns meses, passaram as Descalças a viver numa casa melhor, mas quis D. Álvaro que isso se realizasse com toda a solenidade, em procissão, acompanhando as Descalças o Prelado, o cabido e o povo. Mais; insistiu em que fosse a própria Madre Teresa quem presidisse ao cortejo, incorporando-se ela no termo da procissão, ladeada pelo Bispo, à direita, e pelo Cónego Jerónimo Reinoso, grande protector das Descalças, à esquerda. E assim se fez. Como andaria Santa Teresa tão confundida na sua humildade! É que Deus timbra em exaltar os humildes e a Santa Reformadora era espelho de humildade.
Não nos deve passar despercebido um gesto, cheio de significado, que teve a Madre Teresa quando soube da transferência de D. Álvaro para a diocese de Palência. É sabido que o primeiro convento de Descalças fundado em Ávila pela Madre Teresa, com Bula de Sua Santidade Pio IV, ficara sujeito, por causas especiais, ao Sr. Bispo de Ávila73, que então era D. Álvaro de Mendoza. Ora, mal soube que este grande amigo e favorecedor da Reforma ia ser transferido para Palência, apareceu um dia, de surpresa, no convento de S. José de Ávila, a fim de tratar com os Superiores e Prelados da mudança de jurisdição, no sentido de que este Carmelo ficasse também sujeito aos Superiores da Ordem, exactamente como os outros mosteiros de Descalças por ela fundados, sem excluir o de Caravaca que estava situado em territórios da Ordem Militar de S. Tiago. A Reformadora alcançou o que pretendia, como se vê, tanto nesta como em outras ocasiões, mostrando-se prudente, diplomata e filha extremosa do Carmo.
Estando ainda no Carmo de Palência, experimentou Santa Teresa uma das maiores alegrias da sua vida; e o motivo não podia ser mais justo. Folgando um dia com suas filhas à hora do recreio, chegara ao seu conhecimento uma boa nova, a mais compensadora que ela, Reformadora do Carmo, poderia desejar; o Santo Padre Gregório XIII, por Breve de 22 de Junho de 1580, concedera autonomia aos Descalços e Descalças de Nossa Senhora do Carmo, separando-os da jurisdição dos Calçados. Queria isto dizer à Madre Teresa, doente, envelhecida e extenuada com as fadigas e canseiras de tantas fundações, que a Santa Igreja reconhecia a sua obra, a Reforma Carmelita, como Ordem Religiosa independente, com a sua Regra, a Primitiva, e com os seus Superiores próprios.
O triunfo da Madre Teresa não podia ser mais estrondoso. Não é fácil fazer uma ideia da exultação do espírito da Santa Reformadora nesta conjuntura do júbilo que lhe inundou a alma ao receber tão grande notícia.


Agora já podia Santa Teresa cantar o “Agora, Senhor...”, com o velho Simeão; já podia levantar voo para o Céu. E com toda a razão. Lançando os olhos pelas imensas planícies de Castela e Andaluzia, cobertas de oliveiras e trigais, via espalhados, aqui e além, por toda a parte, conventos reformados de Descalços e Descalças Carmelitas, que representavam a realização mais completa do seu sonho dourado.
Teresa de Jesus tinha cumprido totalmente a missão que Deus lhes confiara na Terra.
*

À fundação do Carmelo de Palência seguiram-se as de Sória, Granada e Burgos. Realizou-se a primeira a 14 de Junho de 1581, dia dedicado na Ordem ao Profeta Eliseu. Teve a dar-lhe brilho a presença da Santa Madre, a pedido do Dr. Velasquez, Bispo de Osma, que tinha sido seu confessor, quando da estadia da Madre Fundadora em Toledo onde fora cónego.
Rezam velhos manuscritos que este ilustre Prelado quis assistir, da sacada do paço, à entrada da Madre Teresa e de suas filhas na cidade de Sória, lançando-lhes a bênção, enquanto a Reformadora ajoelhava no carro, voltada a face para o Sr. Bispo. O P. Graciano teve muita pena por não poder acompanhar Madre Teresa nesta fundação, sendo substituído pelo P. Nicolau de Jesus Maria Dória, oriundo da Itália, figura de grande relevo na Ordem dos Carmelitas Descalços (1539-1594).
Em Sória, que apenas tinha 5 ou 6.000 habitantes nos dias de Santa Teresa, não muito longe da célebre Numância, encontrou-se casualmente Santa Teresa com um seu antigo confessor, que seria, no rodar dos tempos, um dos seus mais ilustres biógrafos, Fr. Diogo de Yepes, frade da Ordem de S. Jerónimo.
Andava lá por aqueles dias este insigne monge a cumprir uma pena que lhe tinha sido imposta pelo Capítulo Geral da sua Ordem, como lhe disse a ele mesmo a Madre Teresa, abrindo-lhe o íntimo da alma. Duas vezes, neste feliz encontro, teve o P. Yepes a subida honra de confessar Santa Teresa e ministrar-lhe a Sagrada Comunhão. E diz ele, na “Vida” que dela escreveu e enviou a Frei Luís de León: “mostrando a Santa Reformadora no rosto a cor de terra, quer porque já ia adiantada nos caminhos da vida – tinha 67 anos – quer pelas contínuas enfermidades, trabalhos, jejuns e vómitos, que lhe duraram mais de 30 anos, quando ia comungar, transfigurava-se-lhe o rosto de tal forma, como a Santa Catarina de Sena, que ficava resplandecente, de cor transparente e com tamanha majestade que a mim me causava grande devoção, porque manifestava bem Quem tinha na alma e como o Divino Hóspede Se sentia bem com ela”.
Faltara um dia dinheiro a este ilustre sacerdote para cobrir as despesas duma viagem. Conhecendo Madre Teresa o aperto em que se encontrava, emprestou-lhe de bom grado a quantia de que precisava. Passados alguns dias quis Fr. Diogo devolver à Santa Reformadora o dinheiro emprestado. A Madre Teresa, porém, recusou-se a recebê-lo, dizendo-lhe assim: “Ficai, Rev. Padre, com o vosso dinheiro, e quando fordes Bispo mandai construir um mosteiro para as minhas filhas”.
Naquela altura estava bem longe Fr. Diogo de Yepes de pensar em ser Bispo, mas a verdade é que chegou a sê-lo de Tarazona, nomeado por D. Filipe III, e mandou edificar na sua mesma cidade episcopal um Carmelo para as filhas de Santa Teresa (1600).
*

A fundação do Convento de Granada preparou-a Madre Teresa em Ávila, mas não pôde ir pessoalmente inaugurá-la por duas razões: em primeiro lugar, porque andava, por esses dias, bastante enferma, muito caída, fatigada pelas viagens fundacionais por terras de Castela e Andaluzia, caminhando a passos largos para o seu fim último; em segundo lugar, porque tinha dado a palavra de ir ela própria fazer a fundação do Carmelo de Burgos e não queria faltar.
S. João da Cruz, alma desta fundação de Granada, veio propositadamente para levar consigo a Santa Madre a Granada, carregado de patentes e licenças e com todos os requisitos para uma viagem tão longa e tão maçadora de Ávila a Granada em carros com toldo, puxados por preguiçosas mulas. Bem insistiu com a Santa Reformadora, mas tudo em vão. Eram outros bem diferentes os desígnios de Deus. Rendido Frei João aos argumentos da Madre Teresa, houve de aceitar a sua proposta, que era a melhor: levar como fundadora a Prioresa do novo Carmelo, uma discípula predilecta da Santa Madre, Ana de Jesus, que acabava de exercer o mesmo cargo, com brilho invulgar, em Beas. E lá se foi, rumo a Alhambra de Granada, embora um pouco desapontado, o santo Frei João da Cruz.
Antes de partir, trocaram impressões, conversaram à vontade, abriram-se estas duas almas contemplativas em místicas confidências. Santa Teresa falou a Frei João do seu “Castelo Interior”, das sete “Moradas” por onde vai passando progressivamente a alma até chegar à união com Deus; e Frei João, por sua vez, disse à Santa Reformadora alguma coisa da mística ascensão ao Monte Carmelo, do “Cântico Espiritual”, cujo esboço já trazia em mente e queria escrever a pedido das Descalças, para direcção dos frades e das freiras da Ordem.


Era esta a primeira vez que se encontravam os Santos Reformadores depois da evasão milagrosa de Frei João do cárcere de Toledo, e ambos os santos palpitavam ser aquela a derradeira que se veriam sobre a terra... “Adeus, até ao Céu”, dizia a Madre Teresa a Frei João, cravando os olhos grandes e negros na silhueta miudinha daquele frade que havia de ser o Príncipe dos Místicos e Doutor da Santa Igreja.
Adeus, Frei João, até ao Céu! A Santa Reformadora não se afastou da grade de ferro até que se esfumara por completo, na penumbra do locutório de S. José de Ávila, a pequena figura do grande Frei João da Cruz, pequeno no corpo mas gigante no espírito.
Passando por Beas em direcção a Granada, levou o P. João da Cruz as sete monjas que escolhera Santa Teresa para esta fundação. Chegaram todos, Frei João e mais o seu companheiro de viagem, Frei Pedro dos Anjos, a Madre Ana de Jesus e as religiosas, no dia 19 de Janeiro de 1582, rezando-se a primeira missa e tomando-se posse da fundação aos 21 dias do mesmo mês e ano.
Ao princípio, mostrou-se o Sr. Arcebispo um tanto ou quanto contrário à ideia do novo Carmelo, mas, afinal, amedrontado por um raio que lhe caíra no paço, resolveu logo assinar o respectivo documento e conceder a licença.


Durante sete meses viveram as Descalças em casa da D. Ana de Peñalosa, benfeitora da Ordem, onde passaram muitos trabalhos até que conseguiram alugar outra casa melhor.
S. João da Cruz aparece sempre como o amparo providencial deste Carmelo, tanto no espiritual como no temporal. Nomeado Prior do Convento de Carmelitas Descalços de Granada e confessor do Carmelo, dizem os Anais daquele mosteiro que repartia frequentemente com as freiras o pão e o peixe dos frades. A Prioresa, Ana de Jesus e Beatriz de S. Miguel, religiosa desta casa, escreveram lindas e documentadas relações da fundação deste Carmelo, preparada por Santa Teresa mas realizada por S. João da Cruz.


Volvidos alguns meses sobre a inauguração deste mosteiro, endereçou a Santa Madre à Prioresa uma carta notável, das mais preciosas do seu epistolário, em que a repreende maternal mas energicamente por algumas pequenas incorrecções cometidas na fundação daquele mosteiro e no governo da comunidade. Parece mesmo, diz um ilustre biógrafo da Santa Madre, uma autêntica catilinária contra a Superiora do Carmelo de Granada. Censura-lhe a falta de perfeição na obediência, a importância demasiada que ligava aos pontos de honra, o espírito de corpo ou de partido que, um dia, podia vir a aparecer no seio da Comunidade...
Nesta carta que, por humildade e dedicação à Madre Teresa, guardou até à morte a Ven. Ana de Jesus, como jóia num escrínio de ouro, dizia-lhe a Santa Reformadora: “Por amor de Deus peço a V. R. repare bem que está a formar almas para esposas do Crucificado; é preciso que as crucifique em não terem vontade própria e não permita que se deixem enlear em ninharias. Olhe que isto é começar um novo reino e que V. R., bem como as outras irmãs, são mais obrigadas a proceder como varões esforçados do que como mulherzinhas”.
Está aqui retratada a Madre Teresa: mulher sobremaneira amável, enriquecida com todas as prendas próprias do sexo, mas enérgica, muito enérgica, duma energia indomável. O Carmelo de Granada, que conserva parte do autógrafo desta longa carta de Santa Teresa, é ainda hoje dos mais florescentes da Península, donde têm saído ilustres Carmelitas para outras fundações.


*

Conquanto Santa Teresa estivesse quase com um pé na cova, por andar muito doente, extenuada, com febre e uma grande dor de garganta, resolveu cumprir o que tinha prometido: ir ela própria a Burgos inaugurar o mosteiro das Descalças, que se pretendia fundar, como era desejo do P. Provincial, Frei Jerónimo Graciano. “O fim coroa obra”, costuma dizer-se; e é mesmo assim.
A fundação do Carmelo de Burgos é bem um fecho de diamante da longa série de fundações teresianas. É a última, a mais dura, sem dúvida, se excluirmos as de Ávila e Sevilha; dura, porque os próprios elementos da natureza e o demónio se conjugaram para a impedirem. Quis acompanhar a Madre Teresa nos trabalhos desta memorável fundação o Superior Provincial que levou consigo dois frades descalços: o P. Frei Pedro da Purificação, homem douto e inteligente, e mais um irmão leigo.
Tudo a postos, partira de Ávila para Burgos a Madre Teresa acompanhada de cinco religiosas, a Beata Ana de S. Bartolomeu e a sua sobrinha, Teresinha, no dia 2 de Janeiro de 1582, via Medina del Campo, onde já se encontrava dois dias depois.
Os caminhos estavam intransitáveis, transformados num autêntico lamaçal pelas contínuas chuvas, e foi isto o que deu azo à peripécia mais digna de registo desta longa e memorável jornada: os carros – conventos ambulantes – em que iam Santa Teresa e suas filhas, ora estavam em risco de ir água abaixo na enxurrada, por causa das grandes cheias dos rios, ora se afundavam nos lamaçais, designadamente no sítio chamado “Los Pontones”, ao pé de Burgos.


“Aquilo era um mundo de água, escreve Santa Teresa, sem caminho nem barco”75. Um dia, a corrente do Arlanzón era tão forte que as monjas, cheias de medo, recusaram-se a vadear o rio caudaloso sem primeiro se confessarem...


Vencido o perigo, toca a rir a bandeiras despregadas. Nos lances perigosos era sempre a Madre Teresa a primeira a afrontá-los, senhora dos seus nervos. Nesta viagem tão acidentada de Ávila a Burgos, no pino do inverno, diz Santa Teresa que foi grande o conforto, a serenidade e a boa disposição de espírito do P. Jerónimo Graciano, chefe da caravana.


Dia 26 de Janeiro de 1582. O sol brilha de quando em quando entre nuvens negras ameaçadoras de água e saraiva. Depois de terem apanhado bastantes sustos e não poucas molhadelas, chegam os nossos peregrinos, ao fim da tarde, à cidade do Arlanzón.
Primeiro que tudo, secundando os desejos do P. Graciano, vão todos, inclusive Santa Teresa, ajoelhar aos pés do Santo Crucifixo de Burgos venerado na Igreja dos Agostinhos.
Contava a Santa Reformadora inaugurar a fundação no dia seguinte, mas a verdade é que a Divina Providência tinha determinado outra coisa. A Santa Reformadora esgotaria o cálice de amargura antes de conseguir realizar a sonhada fundação burgense, que seria a última. E quem ofereceu a Santa Teresa esse cálice a transbordar foi o Arcebispo de Burgos, D. Cristóvão Vela, que se recusou terminantemente a outorgar a licença prometida, mandando dizer a Santa Teresa que voltasse com as suas monjas para Ávila pelo mesmo caminho.


Bonitos estavam os caminhos, as pontes e as estradas! Que impressão desagradável fariam estas palavras do Prelado no ânimo da Santa Madre e de toda a sua comitiva! Parece que se recusava a conceder a licença para a inauguração do Carmelo, em primeiro lugar, porque já havia muitos mosteiros em Burgos e, além disso, porque entendia não dever dar-lha enquanto as Descalças não tivessem casa própria e rendas para se sustentarem.
As monjas recolheram então a casa de D. Catarina de Tolosa, benfeitora insigne da Ordem, senhora viúva, que dera quatro filhas ao Carmelo. O P. Graciano e seus companheiros foram hóspedes do Dr. Pedro Manso, Cónego Magistral da Sé Metropolitana de Burgos, confessor de Santa Teresa durante a sua estadia nesta cidade e que depois chegou a ser sagrado Bispo de Calahorra. Foi este insigne prelado que proferiu, em determinada ocasião, estas palavras sobre Santa Teresa: “Mais queria arguir com todos os teólogos do mundo do que com a Madre Teresa”.


Ora, ao ver-se a Santa Reformadora em Burgos, com poucas esperanças de conseguir fundar o seu mosteiro, lançou mão de toda a sua política e diplomacia, que era muita. Tratava muito bem, com grande delicadeza, o Sr. Arcebispo, quando ia visitar as Descalças, e escreveu ao Sr. Bispo de Palência para ele interceder junto do Arcebispo burgense, D. Cristóvão, mas ele não se rendia... A amizade entre os dois Prelados parece que começou a esfriar, por D. Álvaro ser todo da Madre Teresa e da sua obra, e ter dito à Santa Reformadora que o seu amigo não deixaria de autorizar a fundação.
O P. Provincial, Frei Jerónimo Graciano, pregador de grandes recursos e com nome feito na Espanha, tinha de ir fazer sermões quaresmais a Valladolid e não queria deixar as Descalças, suas súbditas sem destino. Partiu e voltou a Burgos depois de feita a pregação quaresmal... e o Carmelo não estava ainda fundado! Trocavam-se cartas continuamente sobre o assunto, entre D. Álvaro e D. Cristóvão, mas o Arcebispo não queria dar o braço a torcer, firme no seu ponto de vista.
Só Deus sabe quanto sofreu moralmente Santa Teresa com estas delongas. É que Deus andava a purificá-la, a dar os últimos retoques à estátua primorosa da sua alma de eleição e servia-se, para tanto, do Seu representante na província eclesiástica de Burgos.


Finalmente, volvidos três meses, assegurando um dia o Dr. Manso ao Sr. Arcebispo que as Descalças já tinham arranjado algumas rendas, dignou-se conceder a almejada licença para a inauguração do Carmelo na sua própria cidade episcopal. “Até que enfim” – exclamou a Madre Teresa ao saber da boa nova. – “A luta dos bons é sempre a pior”.
Concedida a licença, rezou a primeira Missa o Dr. Manso, com a assistência do próprio Sr. Arcebispo, tomando-se posse da casa e inaugurando-se o novo Carmelo aos 19 dias de Abril de 1582, domingo de Pascoela.
Não se pode fazer uma ideia da alegria das Descalças naquele dia, ao verem inaugurado o seu mosteiro e triunfante a Santa Reformadora. Se olharmos bem, veremos que não podia ser de outra forma, porque lá andava Deus Nosso Senhor a aperfeiçoar a Sua obra.


No dia seguinte ao da inauguração do mosteiro, conta- nos Teresinha, sobrinha da Madre Teresa, tomou o hábito de Descalça uma das filhas de D. Catarina de Tolosa, e o próprio Sr. Arcebispo quis presidir à cerimónia e fazer o sermão, e disse do alto do púlpito que se arrependia de ter demorado tanto tempo sem motivo a concessão da licença para a fundação deste mosteiro, fazendo sofrer a Madre Teresa, que já era santa... O mesmo diz a Beata Ana de S. Bartolomeu, acrescentando que fez o sermão com tantas lágrimas e humildade que punha devoção no ânimo dos fiéis.
Dias depois da inauguração do Carmelo de Santa Ana, tendo surgido algumas dificuldades quanto à renda que lhes doara D. Catarina de Tolosa mediante escritura, de acordo com o P. Provincial e a Santa Reformadora, renunciaram as Descalças de Burgos, perante o notário, à posse desses haveres, preferindo viver e morrer pobres como Jesus. É que Deus nunca falta com o pão de cada dia a seus servos, fiéis ao seu serviço. Feito isto, despediram-se o P. Graciano e a Santa Madre, partindo o Provincial para Sória e outros conventos sujeitos à sua jurisdição.
Era esta a derradeira vez que se encontravam neste mundo... mas talvez nem um nem outro o presumisse, porque Santa Teresa tinha melhorado muito dos seus achaques em Burgos. Tanto melhor para eles, porque estes dois corações amavam-se muito em Cristo.


No dia 27 de Julho, celebrada a festa da Padroeira do Carmelo, Santa Ana, saíra a Madre Teresa de Burgos para Palência, em companhia de sua sobrinha, Teresinha, a quem queria dar a profissão em Ávila, e a Beata Ana de S. Bartolomeu, sua fiel companheira. A fundação do Carmelo de Burgos fica sendo o último elo da corrente preciosa das suas fundações, e uma das pérolas mais preciosas da sua coroa de Santa e de Reformadora.

[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]