XIV
SANTA TERESA NA ANDALUZIA
Terra de luz e de flores é chamada a antiga Bética. A Giralda de Sevilha e a Alhambra de Granada, a mais linda das suas cidades, são bem o símbolo da terra, cujo anil do céu lembra o manto da Imaculada. Conquanto a Santa Madre Teresa preferisse fundar conventos em Castela, como não tinha outra vontade senão a dos Superiores e estes queriam que a Reforma da Ordem do Carmo se expandisse também por terras da Andaluzia, lá partiu Teresa de Jesus para aquelas regiões iluminadas sempre por um sol resplandecente e regadas pelas mansas águas do Guadalquivir, a fim de fundar novos Carmelos, que, com orações e penitências, alcançassem o triunfo para a Santa Igreja.
A primeira fundação que lá fez foi, na ordem cronológica, a da rica e progressiva vila de Beas, recanto florido da Andaluzia. Hoje, em Espanha, esta vila não tem tanta importância como nos tempos idos em que foi visitada por Santa Teresa.De novo é preciso aprontar carros com toldo para o transporte da Santa Madre e das suas freiras. Como de costume, serão acompanhadas pelo dedicado capelão, P. Julião de Ávila, e por criados, fiéis servidores da Madre Teresa. Com esta mulher extraordinária, lhana, franca, amável, que anda cheia de Deus, estes homens iriam a toda a parte, até aos confins do mundo.
Tudo pronto, como quando da saída de Ávila para a fundação de Medina, e feita a provisão de água benta que não podia faltar, diz a Ven. Ana de Jesus, nas viagens da Santa Madre, para se aproveitar, assim, facilmente, o fruto do sangue de Jesus, começam os carros a rodar lentamente pela estrada que vai de Salamanca a Beas. Vencidas algumas jornadas, pousando em hospedarias e estalagens onde Santa Teresa e suas Descalças eram tratadas com a decência e respeito que a sua profissão religiosa exigia, chegam a Beas.
Talvez em parte nenhuma se tenha feito a Santa Teresa uma recepção tão brilhante e espontânea como nesta vila. Eram os cumprimentos de boas vindas que a bela Andaluzia apresentava à Santa Reformadora. Repique de sinos, oferta de flores, música, cortejo de crianças, rapazes e raparigas do lugar a cantarem melodias andaluzas. Ferrinhos e violas enfeitadas com cravos de variegadas cores andavam, à chegada da Madre Teresa, nas mãos de muitos, enquanto gente nova, atrás dos carros, rodopiava, castigando os pés na estrada. Aquele povo queria dizer assim a Santa Teresa que já se encontrava dentro dos domínios da Andaluzia, terra de luz, de flores, de alegria... A Santa Madre, muito reconhecida, acenava de dentro do carro com as mãos, agradecendo. Tomou-se posse da casa e inaugurou-se a fundação no dia do Apóstolo S. Matias, 24 de Fevereiro de 1575.
Demorou-se a Santa Madre nesta aprazível vila andaluza três meses, sendo objecto das atenções de toda a gente.
Foi aqui, em Beas, que Santa Teresa recebeu a visita do P. Jerónimo Graciano, primeiro Superior Provincial dos Carmelitas Descalços (1545-1616), que não conhecia pessoalmente, conquanto já tivesse trocado algumas cartas com ele. Ficou a Santa Reformadora tão presa das boas maneiras, talento, espírito religioso e prudência deste ilustre carmelita que, desde então, o tomou por seu principal director espiritual e quis que fosse o seu melhor braço de acção na sua obra de fundar mosteiros. De ninguém, porventura, fez Santa Teresa um elogio tão rasgado como deste Padre, que regista na sua vida verdadeiros feitos heróicos, e talvez a ninguém se dedicou mais. Foi Nossa Senhora que o chamou para esta sua Ordem primitiva, quando mais brilhava nas aulas da Universidade de Alcalá, diz Santa Teresa.
Tudo arranjado na casa de Beas e organizada a vida carmelita, queria voltar a Reformadora para Castela, mas o homem põe e Deus dispõe... A visita do Padre Frei Jerónimo Graciano tinha por objecto principal levar consigo a Santa Madre para Sevilha, onde se pretendia fundar um “palomarcito de la Virgen”. Santa Teresa, filha da obediência, teve de se render aos desejos do Superior e seguir de bom grado para a capital da Andaluzia por ser essa a vontade do Senhor manifestada pelo seu representante.
Ficou no seu lugar, em Beas, como Prioresa da comunidade, a Ven. Ana de Jesus, uma das mais ilustres Descalças, tanto pelos seus grandes dotes de inteligência e carácter, como pela sua eminente santidade. Lembra-nos esta célebre carmelita a carta que escrevera um dia a Santa Teresa, lamentando-se da falta de confessores que atendessem às religiosas. A Santa Reformadora deu-lhe esta resposta: Não sei como V. R. se queixa da escassez de directores espirituais tendo aí tão perto o santo Frei João da Cruz, homem celestial e divino. Nunca ninguém fez tal elogio dum mortal, ainda que fosse feito das raízes das árvores, como dizia a própria Santa Teresa dum outro santo, Frei Pedro de Alcântara64.
Corria o ano de 1574. A 18 de Maio partira Santa Teresa para Sevilha, guiada pela mão amiga da obediência e acompanhada de seis freiras, o Capelão, Padre Julião de Ávila, e um frade carmelita descalço, Frei Gregório Nacianceno. A Madre ia adoentada, com um bocado de febre e bastantes dores de cabeça, mas, como a obediência dá forças, segundo lhe tinha dito Nosso Senhor, não hesitou em pôr-se a caminho.
Oito dias consecutivos, oito longas jornadas naqueles pesados carros com toldo, a rodarem preguiçosamente por estradas envoltas em nuvens de poeira... Saíram de Beas a 18 de Maio e só chegaram a Sevilha em 26, ao cair da tarde. Não se pode descrever o que sofreu a Santa Reformadora nestas acidentadas e intermináveis jornadas. O calor, que já aperta na Andaluzia nesta altura do ano, era um martírio. Diz Santa Teresa que entrar nos carros parecia como entrar no Purgatório66. É que as Descalças, animadas do espírito de penitência, faziam aquelas viagens enfronhadas nos seus hábitos de grossa estamenha, vestidas com as suas capas brancas e velados os rostos com véus negros. Conventos ambulantes do século XVI, chamou alguém aos carros em que a Santa Madre Teresa fazia suas excursões fundacionais.
As peripécias desta memorável viagem a Sevilha não têm conta. Dir-se-ia que Deus Nosso Senhor quis pôr à prova as virtudes e a boa disposição de ânimo desta grande mulher que crescia e avultava mais no meio das dificuldades da vida. Enumera-as, uma por uma, com carradas de graça, no livro das Fundações: a romaria do Divino Espírito Santo, nos arredores de Córdova, tendo de passar os carros com os seus toldos levantados por entre a multidão do povo alegre e curioso, o que causou tamanho alvoroço que lembrava uma tourada; a doença que a atacou durante a viagem, tendo de recolher a uma estalagem à beira da estrada, onde a cama parecia feita de pedras agudas; a proibição de passarem os carros pela ponte sobre o Guadalquivir; a necessidade de serrar o eixo dos carros, apressadamente, logo que chegou a licença do regedor; o risco de se afundarem no rio carros e cavalos, frades e freiras, capelães e criados, ao vadearem numa barca o rio, enquanto as monjas aflitas rezavam e os homens da barca faziam grande alarido; etc., etc.
Na verdade, desta vez a sorte não bafejou as fundadoras. Assim, extenuada pelas fadigas e canseiras da viagem, sedenta, com bastante febre, chegou Santa Teresa com a sua comitiva à bela capital da Andaluzia, ao lusco-fusco do dia 26 de Maio. Ao longe, do carro, via a Santa Madre a formosa urbe como uma grande colmeia humana, luxuosas moradias e casas humildes de estilo oriental, janelas floridas, com grades de ferro muitas delas, ruas estreitas e algumas, as mais largas, arborizadas com laranjeiras, limoeiros e amendoeiras.
Sobranceira ao casario branco e mimoso, a Giralda de Sevilha, esguia e vigilante, em atitude de quem guarda um bando de pombas que pousam, à hora da sesta, nas margens exuberantes do Guadalquivir. Assim aparece aos olhos maravilhados de Santa Teresa a encantadora capital da Bética. O calor, mais forte do que em Castela, é já de abrasar em meados de Maio, ainda que temperado pelas brisas deliciosas do Bétis, cantado em estrofes sublimes por Frei Luís de León.
Em Sevilha o ambiente é aprazível. A gente traz no rosto a alegria que lhe vai na alma; nos lábios o sorriso, a chalaça, o remoque espirituoso; e na lapela, um cravo, símbolo do sonho, da ilusão...
A sorte, porém, não foi muito propícia a Santa Teresa, nos primeiros dias, nesta terra de luz e de flores. Deus, que a queria santificar, reservava-lhe aqui alguns bocados amargos. Já havia tido alguns palpites a tal respeito; por isso receava vir. Logo no dia da chegada, recolheu a Santa Madre com suas monjas às águas-furtadas duma casa velha e desmantelada, onde nem leito tinham para dormir. Houve um dia que até água potável lhes faltou para mitigar a sede torturante.
Uma cidade tão opulenta, empório da riqueza e do comércio com a América recentemente descoberta, e as Descalças, que o povo sevilhano queria conhecer, a viverem na pobreza mais extrema: foi isto o que chegou a compreender a Santa Madre.
Um ano levou Santa Teresa sem poder obter do Arcebispo, D. Cristóvão de Rojas e Sandoval, licença para a fundação e sem arranjar casa em condições. Todo este tempo passou a Madre a vencer dificuldades, limar asperezas, procurar aqui e além, por meio de cartas, apoio para a sua obra. De quando em quando o Sr. Arcebispo, grande servo de Deus, mandava-lhes o seu secretário que lhes celebrava a Missa com paramentos oferecidos pelo Prior de las Cuevas, ou dos monges Cartuxos, mas mostrava-se sempre esquivo em conceder-lhe a licença canónica para a fundação. Queria o Prelado um mosteiro com rendas, enquanto a Reformadora, fiel ao voto solene de pobreza que fizera, não admitia rendas nenhumas numa cidade tão rica e populosa.
Porém, o ponto principal da questão parece que não era esse. Diz Maria de S. José, irmã do P. Jerónimo Graciano e uma das religiosas mais notáveis desta casa, no seu precioso livro “Recreaciones de Anastasio”, que o Arcebispo preferia que a Santa Madre se dedicasse a reformar os conventos de freiras existentes em Sevilha, pondo de parte a fundação dum novo convento. Seja como for, o que é certo é que experimentou bem a paciência da Santa Teresa, protelando meses e meses a almejada licença, a ponto da Reformadora chegar a pensar em ir-se embora para Castela sem fazer a fundação, o que não realizou em atenção ao P. Jerónimo Graciano, iniciador do Carmelo de Sevilha. Com excepção da fundação do seu primeiro mosteiro de S. José, em Ávila, foi esta de Sevilha a que mais lhe custou, atesta a própria Santa Teresa.
Mas aqui, como em Ávila, acabou por triunfar a Reformadora, porque o Arcebispo teve, por fim, de se render às suas razões e rogos, e quis ele próprio levar pessoalmente, em procissão, o Santíssimo Sacramento duma paróquia vizinha até à casa nova, que era grande, arejada e cheia de luz, com o seu pátio andaluz entre laranjeiras e limoeiros. Realizou-se a imponente cerimónia em 3 de Junho de 1576, participando, nesse dia, a cidade em peso da alegria das Descalças.
Reza a tradição que, depois da procissão, a Santa Madre pediu, de joelhos, a bênção ao Arcebispo, e que este, por sua vez, com a admiração de todo o povo, caindo de joelhos aos pés de Santa Teresa, lhe suplicou que lhe desse a sua bênção, o que a Madre teve de fazer obrigada pela obediência. Vemos aqui a santidade de Teresa de Jesus reconhecida já pelos mais ilustres prelados da Igreja na Espanha do século XVI.
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Neste mesmo ano de 1576 fundou-se também, no dia 1 de Janeiro, o mosteiro de S. José, na cidade de Caravaca, província de Múrcia; mas, como a Santa Reformadora estava tão longe... em Sevilha, não foi pessoalmente inaugurá-lo. Delegou, porém, poderes no capelão, P. Julião de Ávila, que, acompanhado dum cavalheiro muito servo de Deus chamado António Gaitan foi visitar o local e preparar tudo para a fundação em projecto.Cumprida a sua missão, seguiram eles para as suas terras, pois a Santa Madre já podia contar com frades Descalços para a acompanharem nestas fundações.
Para tomar posse, em Caravaca, do mosteiro e organizar a vida carmelita reformada, nomeou para Prioresa da comunidade uma religiosa de muito valor, tida em grande conta pela Reformadora e por S. João da Cruz, a Madre Ana de Santo Alberto, oriunda do Carmelo de Malagón. Nesta casa aguardavam a ordem de partir as freiras escolhidas para a nova fundação. Tudo pronto em Caravaca, seguiram com a Superiora, acompanhadas de dois carmelitas. A História da Ordem arquivou seus nomes; eram Frei Ambrósio de S. Pedro e Frei Miguel da Coluna.
Antes de terminar as notas desta fundação teresiana, vale bem a pena registar-se aqui a prova de amor e dedicação à sua Ordem que Santa Teresa deu por ocasião da inauguração deste novo “palomarcito de la Virgen”.
Como a cidade de Caravaca estava, no tempo a que nos referimos, sob a jurisdição eclesiástica do Conselho das Ordens Militares, arranjou-se licença para se fundar o convento das Descalças com dependência do Comendador da Ordem de S. Tiago. A Santa Madre, filha extremosa da sua Ordem, não quis aceitar a licença nestas condições e exigiu que o convento ficasse sujeito aos Superiores do Carmo. Neste sentido, as fundadoras do mosteiro tiveram de pedir nova licença e a própria Reformadora escreveu sobre isso uma carta memorável ao Rei da Espanha, D. Filipe II, que lhe enviou a tal licença datada em 9 de Junho de 1575.
Santa Teresa gostava das coisas bem feitas.
[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]