sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A história continua...Santa Teresa de Jesus, cap XVI

XVI
ÚLTIMAS FUNDAÇÕES

Lindo dia de sol, o de 25 de Novembro de 1579! Tem chovido muito em Toledo e o vento Norte varre as nuvens. A Madre Teresa por ordem do Superior, Frei Ângelo de Salazar, deixa o mosteiro da cidade dos Concílios que lhe servira de cárcere durante três largos anos, e vai, agora acompanhada da irmã conversa Ana de S. Bartolomeu, a caminho de Villanueva de la Jara, aldeia da província de Cuenca, com 3.000 habitantes, onde pretende fundar mais um Carmelo.
O sol, depois da tormenta, parece-lhe mais belo, o ambiente mais amorável, as flores do outono mais formosas. Com beneplácito dos Superiores, descansa a Santa Reformadora dois meses em Malagón, enquanto se vencem as últimas dificuldades e tudo se apronta para a fundação, que será o décimo terceiro dos Carmelos por ela fundados.
A Santa Madre está agora melhor de saúde porque lhe fizeram muito bem, tanto ao corpo como à alma, os três anos de reclusão impostos pelo P. Geral da Ordem, mas está já bastante cansada, porque anda nos seus 64 invernos. Traz o braço esquerdo ao peito, pois reza a tradição que, empurrada pelo demónio, fulo por lhe haver tirado tantas almas, rolara, um dia, escada abaixo no mosteiro de S. José, em Ávila, na última ocasião que lá esteve. É por isso que agora a Santa Madre andará sempre acompanhada de Ana de S. Bartolomeu, alma simples e santa, que lhe prestará com toda a dedicação de filha, os serviços de enfermeira e secretária, ajudando-a, por vezes, até a redigir cartas.


Saíra, portanto, de Toledo na companhia desta sua enfermeira, para o mosteiro de Malagón por ela mesma fundado. Aqui se demorou Santa Teresa até ao dia 13 de Fevereiro, partindo nesta data para Villanueva de la Jara, nas vésperas da Quaresma.
Quis levar consigo, destinadas à nova fundação: quatro religiosas, duas de Toledo e mais duas de Malagón. Foi uma viagem verdadeiramente triunfal a jornada de Malagón a Villanueva de la Jara, pois toda a gente das aldeias saía à beira das estradas a ver a Santa Madre, cuja fama já enchia a Península.
O P. António de Jesus e o Prior dos Carmelitas Descalços de La Roda, Frei Gabriel da Assunção, acompanharam as monjas nesta jornada.
Conta-nos, no relatório desta fundação, a Beata Ana de S. Bartolomeu71 que, na povoação de La Roda, onde as fundadoras se detiveram três dias, foi preciso pôr polícia à porta da casa onde se hospedava Santa Teresa, porque o povo invadia literalmente as dependências todas para a ver e falar-lhe.


Entraram em Villanueva de la Jara nas primeiras horas do dia 21 de Fevereiro de 1580, que era o 1º Domingo da Quaresma, tomando-se nessa mesma data posse da nova fundação na ermida de Santa Ana e iniciando-se a vida carmelita descalça na casa-convento a ela anexa. Note-se que, apesar de ser pobre o lugar, Santa Teresa recusou-se a admitir rendas de qualquer espécie, confiando na Divina Providência que não abandona nunca os que servem a Deus com fidelidade.

*Ao findar o mesmo ano, 1580, realizou a Santa Reformadora uma outra fundação, a do mosteiro de Palência. Meteu ombros a este empreendimento a rogos do Sr. Bispo daquela diocese, D. Álvaro de Mendoza, ilustre Prelado que já conhecemos e que lhe era muito dedicado desde que tratara com ela mais de perto, quando Bispo de Ávila.
Tendo tomado posse do Bispado de Palência, em 9 de Fevereiro de 1578, e não se sentindo bem sem o conforto espiritual e exemplos de virtude das Descalças, pedira aos Superiores da Ordem a fundação dum Carmelo da Madre Teresa na sua cidade episcopal.
A própria Madre Reformadora quis ir inaugurá-lo pessoalmente, em atenção aos favores que dele havia recebido, quando da fundação do mosteiro de S. José de Ávila, no ano de 1562.
O dia aprazado para a inauguração do mosteiro e início da vida carmelita descalça em Palência, foi o dia 29 de Dezembro daquele ano, 1580, tendo chegado, dias antes, de Valladolid, onde estivera muito doente, mesmo em perigo de vida, por ocasião da epidemia de “influenza” que então grassava na Espanha72.
Esta fundação foi a que menos custou à Santa Reformadora. Tudo correu às mil maravilhas: licença do Prelado, compra da casa, escrituras, capelães, sustento das monjas, sem dissabores de nenhuma espécie. O Sr. Bispo, logo no dia da entrada, prometeu prover o Carmelo de quanto precisasse. A Santa Madre mostrava-se encantada com aquela gente palentina, em que via um como reflexo da Igreja primitiva na pureza da fé, nos costumes simples e morigerados do povo, na prática da verdadeira caridade cristã.


Volvidos alguns meses, passaram as Descalças a viver numa casa melhor, mas quis D. Álvaro que isso se realizasse com toda a solenidade, em procissão, acompanhando as Descalças o Prelado, o cabido e o povo. Mais; insistiu em que fosse a própria Madre Teresa quem presidisse ao cortejo, incorporando-se ela no termo da procissão, ladeada pelo Bispo, à direita, e pelo Cónego Jerónimo Reinoso, grande protector das Descalças, à esquerda. E assim se fez. Como andaria Santa Teresa tão confundida na sua humildade! É que Deus timbra em exaltar os humildes e a Santa Reformadora era espelho de humildade.
Não nos deve passar despercebido um gesto, cheio de significado, que teve a Madre Teresa quando soube da transferência de D. Álvaro para a diocese de Palência. É sabido que o primeiro convento de Descalças fundado em Ávila pela Madre Teresa, com Bula de Sua Santidade Pio IV, ficara sujeito, por causas especiais, ao Sr. Bispo de Ávila73, que então era D. Álvaro de Mendoza. Ora, mal soube que este grande amigo e favorecedor da Reforma ia ser transferido para Palência, apareceu um dia, de surpresa, no convento de S. José de Ávila, a fim de tratar com os Superiores e Prelados da mudança de jurisdição, no sentido de que este Carmelo ficasse também sujeito aos Superiores da Ordem, exactamente como os outros mosteiros de Descalças por ela fundados, sem excluir o de Caravaca que estava situado em territórios da Ordem Militar de S. Tiago. A Reformadora alcançou o que pretendia, como se vê, tanto nesta como em outras ocasiões, mostrando-se prudente, diplomata e filha extremosa do Carmo.
Estando ainda no Carmo de Palência, experimentou Santa Teresa uma das maiores alegrias da sua vida; e o motivo não podia ser mais justo. Folgando um dia com suas filhas à hora do recreio, chegara ao seu conhecimento uma boa nova, a mais compensadora que ela, Reformadora do Carmo, poderia desejar; o Santo Padre Gregório XIII, por Breve de 22 de Junho de 1580, concedera autonomia aos Descalços e Descalças de Nossa Senhora do Carmo, separando-os da jurisdição dos Calçados. Queria isto dizer à Madre Teresa, doente, envelhecida e extenuada com as fadigas e canseiras de tantas fundações, que a Santa Igreja reconhecia a sua obra, a Reforma Carmelita, como Ordem Religiosa independente, com a sua Regra, a Primitiva, e com os seus Superiores próprios.
O triunfo da Madre Teresa não podia ser mais estrondoso. Não é fácil fazer uma ideia da exultação do espírito da Santa Reformadora nesta conjuntura do júbilo que lhe inundou a alma ao receber tão grande notícia.


Agora já podia Santa Teresa cantar o “Agora, Senhor...”, com o velho Simeão; já podia levantar voo para o Céu. E com toda a razão. Lançando os olhos pelas imensas planícies de Castela e Andaluzia, cobertas de oliveiras e trigais, via espalhados, aqui e além, por toda a parte, conventos reformados de Descalços e Descalças Carmelitas, que representavam a realização mais completa do seu sonho dourado.
Teresa de Jesus tinha cumprido totalmente a missão que Deus lhes confiara na Terra.
*

À fundação do Carmelo de Palência seguiram-se as de Sória, Granada e Burgos. Realizou-se a primeira a 14 de Junho de 1581, dia dedicado na Ordem ao Profeta Eliseu. Teve a dar-lhe brilho a presença da Santa Madre, a pedido do Dr. Velasquez, Bispo de Osma, que tinha sido seu confessor, quando da estadia da Madre Fundadora em Toledo onde fora cónego.
Rezam velhos manuscritos que este ilustre Prelado quis assistir, da sacada do paço, à entrada da Madre Teresa e de suas filhas na cidade de Sória, lançando-lhes a bênção, enquanto a Reformadora ajoelhava no carro, voltada a face para o Sr. Bispo. O P. Graciano teve muita pena por não poder acompanhar Madre Teresa nesta fundação, sendo substituído pelo P. Nicolau de Jesus Maria Dória, oriundo da Itália, figura de grande relevo na Ordem dos Carmelitas Descalços (1539-1594).
Em Sória, que apenas tinha 5 ou 6.000 habitantes nos dias de Santa Teresa, não muito longe da célebre Numância, encontrou-se casualmente Santa Teresa com um seu antigo confessor, que seria, no rodar dos tempos, um dos seus mais ilustres biógrafos, Fr. Diogo de Yepes, frade da Ordem de S. Jerónimo.
Andava lá por aqueles dias este insigne monge a cumprir uma pena que lhe tinha sido imposta pelo Capítulo Geral da sua Ordem, como lhe disse a ele mesmo a Madre Teresa, abrindo-lhe o íntimo da alma. Duas vezes, neste feliz encontro, teve o P. Yepes a subida honra de confessar Santa Teresa e ministrar-lhe a Sagrada Comunhão. E diz ele, na “Vida” que dela escreveu e enviou a Frei Luís de León: “mostrando a Santa Reformadora no rosto a cor de terra, quer porque já ia adiantada nos caminhos da vida – tinha 67 anos – quer pelas contínuas enfermidades, trabalhos, jejuns e vómitos, que lhe duraram mais de 30 anos, quando ia comungar, transfigurava-se-lhe o rosto de tal forma, como a Santa Catarina de Sena, que ficava resplandecente, de cor transparente e com tamanha majestade que a mim me causava grande devoção, porque manifestava bem Quem tinha na alma e como o Divino Hóspede Se sentia bem com ela”.
Faltara um dia dinheiro a este ilustre sacerdote para cobrir as despesas duma viagem. Conhecendo Madre Teresa o aperto em que se encontrava, emprestou-lhe de bom grado a quantia de que precisava. Passados alguns dias quis Fr. Diogo devolver à Santa Reformadora o dinheiro emprestado. A Madre Teresa, porém, recusou-se a recebê-lo, dizendo-lhe assim: “Ficai, Rev. Padre, com o vosso dinheiro, e quando fordes Bispo mandai construir um mosteiro para as minhas filhas”.
Naquela altura estava bem longe Fr. Diogo de Yepes de pensar em ser Bispo, mas a verdade é que chegou a sê-lo de Tarazona, nomeado por D. Filipe III, e mandou edificar na sua mesma cidade episcopal um Carmelo para as filhas de Santa Teresa (1600).
*

A fundação do Convento de Granada preparou-a Madre Teresa em Ávila, mas não pôde ir pessoalmente inaugurá-la por duas razões: em primeiro lugar, porque andava, por esses dias, bastante enferma, muito caída, fatigada pelas viagens fundacionais por terras de Castela e Andaluzia, caminhando a passos largos para o seu fim último; em segundo lugar, porque tinha dado a palavra de ir ela própria fazer a fundação do Carmelo de Burgos e não queria faltar.
S. João da Cruz, alma desta fundação de Granada, veio propositadamente para levar consigo a Santa Madre a Granada, carregado de patentes e licenças e com todos os requisitos para uma viagem tão longa e tão maçadora de Ávila a Granada em carros com toldo, puxados por preguiçosas mulas. Bem insistiu com a Santa Reformadora, mas tudo em vão. Eram outros bem diferentes os desígnios de Deus. Rendido Frei João aos argumentos da Madre Teresa, houve de aceitar a sua proposta, que era a melhor: levar como fundadora a Prioresa do novo Carmelo, uma discípula predilecta da Santa Madre, Ana de Jesus, que acabava de exercer o mesmo cargo, com brilho invulgar, em Beas. E lá se foi, rumo a Alhambra de Granada, embora um pouco desapontado, o santo Frei João da Cruz.
Antes de partir, trocaram impressões, conversaram à vontade, abriram-se estas duas almas contemplativas em místicas confidências. Santa Teresa falou a Frei João do seu “Castelo Interior”, das sete “Moradas” por onde vai passando progressivamente a alma até chegar à união com Deus; e Frei João, por sua vez, disse à Santa Reformadora alguma coisa da mística ascensão ao Monte Carmelo, do “Cântico Espiritual”, cujo esboço já trazia em mente e queria escrever a pedido das Descalças, para direcção dos frades e das freiras da Ordem.


Era esta a primeira vez que se encontravam os Santos Reformadores depois da evasão milagrosa de Frei João do cárcere de Toledo, e ambos os santos palpitavam ser aquela a derradeira que se veriam sobre a terra... “Adeus, até ao Céu”, dizia a Madre Teresa a Frei João, cravando os olhos grandes e negros na silhueta miudinha daquele frade que havia de ser o Príncipe dos Místicos e Doutor da Santa Igreja.
Adeus, Frei João, até ao Céu! A Santa Reformadora não se afastou da grade de ferro até que se esfumara por completo, na penumbra do locutório de S. José de Ávila, a pequena figura do grande Frei João da Cruz, pequeno no corpo mas gigante no espírito.
Passando por Beas em direcção a Granada, levou o P. João da Cruz as sete monjas que escolhera Santa Teresa para esta fundação. Chegaram todos, Frei João e mais o seu companheiro de viagem, Frei Pedro dos Anjos, a Madre Ana de Jesus e as religiosas, no dia 19 de Janeiro de 1582, rezando-se a primeira missa e tomando-se posse da fundação aos 21 dias do mesmo mês e ano.
Ao princípio, mostrou-se o Sr. Arcebispo um tanto ou quanto contrário à ideia do novo Carmelo, mas, afinal, amedrontado por um raio que lhe caíra no paço, resolveu logo assinar o respectivo documento e conceder a licença.


Durante sete meses viveram as Descalças em casa da D. Ana de Peñalosa, benfeitora da Ordem, onde passaram muitos trabalhos até que conseguiram alugar outra casa melhor.
S. João da Cruz aparece sempre como o amparo providencial deste Carmelo, tanto no espiritual como no temporal. Nomeado Prior do Convento de Carmelitas Descalços de Granada e confessor do Carmelo, dizem os Anais daquele mosteiro que repartia frequentemente com as freiras o pão e o peixe dos frades. A Prioresa, Ana de Jesus e Beatriz de S. Miguel, religiosa desta casa, escreveram lindas e documentadas relações da fundação deste Carmelo, preparada por Santa Teresa mas realizada por S. João da Cruz.


Volvidos alguns meses sobre a inauguração deste mosteiro, endereçou a Santa Madre à Prioresa uma carta notável, das mais preciosas do seu epistolário, em que a repreende maternal mas energicamente por algumas pequenas incorrecções cometidas na fundação daquele mosteiro e no governo da comunidade. Parece mesmo, diz um ilustre biógrafo da Santa Madre, uma autêntica catilinária contra a Superiora do Carmelo de Granada. Censura-lhe a falta de perfeição na obediência, a importância demasiada que ligava aos pontos de honra, o espírito de corpo ou de partido que, um dia, podia vir a aparecer no seio da Comunidade...
Nesta carta que, por humildade e dedicação à Madre Teresa, guardou até à morte a Ven. Ana de Jesus, como jóia num escrínio de ouro, dizia-lhe a Santa Reformadora: “Por amor de Deus peço a V. R. repare bem que está a formar almas para esposas do Crucificado; é preciso que as crucifique em não terem vontade própria e não permita que se deixem enlear em ninharias. Olhe que isto é começar um novo reino e que V. R., bem como as outras irmãs, são mais obrigadas a proceder como varões esforçados do que como mulherzinhas”.
Está aqui retratada a Madre Teresa: mulher sobremaneira amável, enriquecida com todas as prendas próprias do sexo, mas enérgica, muito enérgica, duma energia indomável. O Carmelo de Granada, que conserva parte do autógrafo desta longa carta de Santa Teresa, é ainda hoje dos mais florescentes da Península, donde têm saído ilustres Carmelitas para outras fundações.


*

Conquanto Santa Teresa estivesse quase com um pé na cova, por andar muito doente, extenuada, com febre e uma grande dor de garganta, resolveu cumprir o que tinha prometido: ir ela própria a Burgos inaugurar o mosteiro das Descalças, que se pretendia fundar, como era desejo do P. Provincial, Frei Jerónimo Graciano. “O fim coroa obra”, costuma dizer-se; e é mesmo assim.
A fundação do Carmelo de Burgos é bem um fecho de diamante da longa série de fundações teresianas. É a última, a mais dura, sem dúvida, se excluirmos as de Ávila e Sevilha; dura, porque os próprios elementos da natureza e o demónio se conjugaram para a impedirem. Quis acompanhar a Madre Teresa nos trabalhos desta memorável fundação o Superior Provincial que levou consigo dois frades descalços: o P. Frei Pedro da Purificação, homem douto e inteligente, e mais um irmão leigo.
Tudo a postos, partira de Ávila para Burgos a Madre Teresa acompanhada de cinco religiosas, a Beata Ana de S. Bartolomeu e a sua sobrinha, Teresinha, no dia 2 de Janeiro de 1582, via Medina del Campo, onde já se encontrava dois dias depois.
Os caminhos estavam intransitáveis, transformados num autêntico lamaçal pelas contínuas chuvas, e foi isto o que deu azo à peripécia mais digna de registo desta longa e memorável jornada: os carros – conventos ambulantes – em que iam Santa Teresa e suas filhas, ora estavam em risco de ir água abaixo na enxurrada, por causa das grandes cheias dos rios, ora se afundavam nos lamaçais, designadamente no sítio chamado “Los Pontones”, ao pé de Burgos.


“Aquilo era um mundo de água, escreve Santa Teresa, sem caminho nem barco”75. Um dia, a corrente do Arlanzón era tão forte que as monjas, cheias de medo, recusaram-se a vadear o rio caudaloso sem primeiro se confessarem...


Vencido o perigo, toca a rir a bandeiras despregadas. Nos lances perigosos era sempre a Madre Teresa a primeira a afrontá-los, senhora dos seus nervos. Nesta viagem tão acidentada de Ávila a Burgos, no pino do inverno, diz Santa Teresa que foi grande o conforto, a serenidade e a boa disposição de espírito do P. Jerónimo Graciano, chefe da caravana.


Dia 26 de Janeiro de 1582. O sol brilha de quando em quando entre nuvens negras ameaçadoras de água e saraiva. Depois de terem apanhado bastantes sustos e não poucas molhadelas, chegam os nossos peregrinos, ao fim da tarde, à cidade do Arlanzón.
Primeiro que tudo, secundando os desejos do P. Graciano, vão todos, inclusive Santa Teresa, ajoelhar aos pés do Santo Crucifixo de Burgos venerado na Igreja dos Agostinhos.
Contava a Santa Reformadora inaugurar a fundação no dia seguinte, mas a verdade é que a Divina Providência tinha determinado outra coisa. A Santa Reformadora esgotaria o cálice de amargura antes de conseguir realizar a sonhada fundação burgense, que seria a última. E quem ofereceu a Santa Teresa esse cálice a transbordar foi o Arcebispo de Burgos, D. Cristóvão Vela, que se recusou terminantemente a outorgar a licença prometida, mandando dizer a Santa Teresa que voltasse com as suas monjas para Ávila pelo mesmo caminho.


Bonitos estavam os caminhos, as pontes e as estradas! Que impressão desagradável fariam estas palavras do Prelado no ânimo da Santa Madre e de toda a sua comitiva! Parece que se recusava a conceder a licença para a inauguração do Carmelo, em primeiro lugar, porque já havia muitos mosteiros em Burgos e, além disso, porque entendia não dever dar-lha enquanto as Descalças não tivessem casa própria e rendas para se sustentarem.
As monjas recolheram então a casa de D. Catarina de Tolosa, benfeitora insigne da Ordem, senhora viúva, que dera quatro filhas ao Carmelo. O P. Graciano e seus companheiros foram hóspedes do Dr. Pedro Manso, Cónego Magistral da Sé Metropolitana de Burgos, confessor de Santa Teresa durante a sua estadia nesta cidade e que depois chegou a ser sagrado Bispo de Calahorra. Foi este insigne prelado que proferiu, em determinada ocasião, estas palavras sobre Santa Teresa: “Mais queria arguir com todos os teólogos do mundo do que com a Madre Teresa”.


Ora, ao ver-se a Santa Reformadora em Burgos, com poucas esperanças de conseguir fundar o seu mosteiro, lançou mão de toda a sua política e diplomacia, que era muita. Tratava muito bem, com grande delicadeza, o Sr. Arcebispo, quando ia visitar as Descalças, e escreveu ao Sr. Bispo de Palência para ele interceder junto do Arcebispo burgense, D. Cristóvão, mas ele não se rendia... A amizade entre os dois Prelados parece que começou a esfriar, por D. Álvaro ser todo da Madre Teresa e da sua obra, e ter dito à Santa Reformadora que o seu amigo não deixaria de autorizar a fundação.
O P. Provincial, Frei Jerónimo Graciano, pregador de grandes recursos e com nome feito na Espanha, tinha de ir fazer sermões quaresmais a Valladolid e não queria deixar as Descalças, suas súbditas sem destino. Partiu e voltou a Burgos depois de feita a pregação quaresmal... e o Carmelo não estava ainda fundado! Trocavam-se cartas continuamente sobre o assunto, entre D. Álvaro e D. Cristóvão, mas o Arcebispo não queria dar o braço a torcer, firme no seu ponto de vista.
Só Deus sabe quanto sofreu moralmente Santa Teresa com estas delongas. É que Deus andava a purificá-la, a dar os últimos retoques à estátua primorosa da sua alma de eleição e servia-se, para tanto, do Seu representante na província eclesiástica de Burgos.


Finalmente, volvidos três meses, assegurando um dia o Dr. Manso ao Sr. Arcebispo que as Descalças já tinham arranjado algumas rendas, dignou-se conceder a almejada licença para a inauguração do Carmelo na sua própria cidade episcopal. “Até que enfim” – exclamou a Madre Teresa ao saber da boa nova. – “A luta dos bons é sempre a pior”.
Concedida a licença, rezou a primeira Missa o Dr. Manso, com a assistência do próprio Sr. Arcebispo, tomando-se posse da casa e inaugurando-se o novo Carmelo aos 19 dias de Abril de 1582, domingo de Pascoela.
Não se pode fazer uma ideia da alegria das Descalças naquele dia, ao verem inaugurado o seu mosteiro e triunfante a Santa Reformadora. Se olharmos bem, veremos que não podia ser de outra forma, porque lá andava Deus Nosso Senhor a aperfeiçoar a Sua obra.


No dia seguinte ao da inauguração do mosteiro, conta- nos Teresinha, sobrinha da Madre Teresa, tomou o hábito de Descalça uma das filhas de D. Catarina de Tolosa, e o próprio Sr. Arcebispo quis presidir à cerimónia e fazer o sermão, e disse do alto do púlpito que se arrependia de ter demorado tanto tempo sem motivo a concessão da licença para a fundação deste mosteiro, fazendo sofrer a Madre Teresa, que já era santa... O mesmo diz a Beata Ana de S. Bartolomeu, acrescentando que fez o sermão com tantas lágrimas e humildade que punha devoção no ânimo dos fiéis.
Dias depois da inauguração do Carmelo de Santa Ana, tendo surgido algumas dificuldades quanto à renda que lhes doara D. Catarina de Tolosa mediante escritura, de acordo com o P. Provincial e a Santa Reformadora, renunciaram as Descalças de Burgos, perante o notário, à posse desses haveres, preferindo viver e morrer pobres como Jesus. É que Deus nunca falta com o pão de cada dia a seus servos, fiéis ao seu serviço. Feito isto, despediram-se o P. Graciano e a Santa Madre, partindo o Provincial para Sória e outros conventos sujeitos à sua jurisdição.
Era esta a derradeira vez que se encontravam neste mundo... mas talvez nem um nem outro o presumisse, porque Santa Teresa tinha melhorado muito dos seus achaques em Burgos. Tanto melhor para eles, porque estes dois corações amavam-se muito em Cristo.


No dia 27 de Julho, celebrada a festa da Padroeira do Carmelo, Santa Ana, saíra a Madre Teresa de Burgos para Palência, em companhia de sua sobrinha, Teresinha, a quem queria dar a profissão em Ávila, e a Beata Ana de S. Bartolomeu, sua fiel companheira. A fundação do Carmelo de Burgos fica sendo o último elo da corrente preciosa das suas fundações, e uma das pérolas mais preciosas da sua coroa de Santa e de Reformadora.

[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]