Descobrimos o oceano que faltava:
O Mar da Alma!
DOM /SEG/TER /QUA/QUI /SEX /SOL /DOM. Sim acertou, há um erro. SOL não tem nada a ver com o resto, ou, se calhar, até tem. É que os outros dias estão com nomes de dias porque foram dias de chuva. O dia do sol foi o nosso dia. E que belo dia! QUE BELO DIA FOI O SÁBADO DA NOSSA CARMINHADA!O Mar da Alma!
Assim sendo, também poderia ter escrito: CHU/CHU/CHU /CHU /CHU/CHU /SAB /CHU. E assim também era verdade.
As agendas mandavam-nos correr para Vila Praia de Âncora, porque ali nos esperava um punhado de irredutíveis, que, como nós, passaram os dias de nariz no ar, cheirando o tempo, adivinhando se… se haveria bom tempo para carminhar.
E depois de tanta espera e quase desespero houve muito bom tempo. Passamos dias a fio perscrutando o chumbo das nuvens, e das nuvens não vinha mensagem alguma.
Restou esperar. E prepararmo-nos para o que desse e viesse. E estávamos preparados, só que não foi preciso.
Na noite anterior, sim, naquele pedacinho de tempo em que um dia vira de um para o outro, telefonam-me: Que fazemos? Esperamos, respondi. E se chove, insistiu? Se chove é porque Deus quer!, se tivermos sol é porque Ele assim quererá! Seja o que Deus quiser. Que podemos nós fazer senão esperar louvá-lO do jeito que Ele quer? Vamos esperar para ver.
E fui para a cama.
Acordei a horas. Hesitei levantar-me por não querer nem ver o tempo. Tal o medo. Por fim o relógio impôs-se. Era hora. Mas não abri a janela antes do banho. Só no fim, e… havia nevoeiro. Nevoeiro? Que quererá isso dizer? Será que, será que – perguntei-me entre o adormecido e o surpreendido –, será que chove em dias de nevoeiro?
O pequeno-almoço foi mesmo pequeno. Lá fora esperavam ovelhas. Partimos com esperança. Parece que Deus abrira uma janela. O Zé ao volante aproximava-nos lentamente de Âncora, que até fica perto. E aquela serena aproximação era prenúncio de bom tempo que nos surpreendeu antes de Carreço.
Chegamos, rezamos e partimos
Chegamos a Âncora a tempo de acordar os ancorenses. Que chegaram logo. E o restante rebanho depressa chegou todo: Viana, São Salvador da Torre, Paços de Gaiolo, Moinhos da Gândara, Gafanha da Nazaré, Caíde de Rei, Braga, Ávila e Âncora. Não faltou ninguém dos que puderam vir. Outros logo virão, como o bom tempo! Éramos mais de oitenta!
Feitas as apresentações rápidas e os avisos (in)dispensáveis, partimos. Partimos, não! Não partimos sem rezar, sem encomendar o dia à Senhora do lugar, a Senhora da Bonança. (Afinal terá sido Ela que nos socorreu, habituada que está a dar mar chão aos pescadores!) E como ninguém deveria rezar sozinho, como ensina a Santa Madre, lá rezámos todos juntos: «Ó Deus, tu és o meu Deus; ansiosamente te busco!»
Ansiosamente partimos em direcção ao Âncora. Sim, aí mesmo onde o Atlântico o bebe num pequenino e delicado cálice!
Olhem que existem poucas imagens mais humildes e tão poderosas! O rio Âncora vem lá das Argas – sim, muito acima de São João d’Arga! –, desce baixando toda a serra sem encorpar muito, para muito, muito, mas mesmo muito mansinho (e estamos no Inverno!) entrar no mar! Que beleza de rio a entrar sorrateiro no mar!
Saímos, pois, da Capela da Senhora da Bonança. O dia claro animava-nos. Apontámos ao caminho mais longínquo, sinal de confiança no tempo e nas temperaturas. Cruzamos três ou quatro ruas. E eis que oitenta inesperados miúdos impressionam os pacatos comerciantes, porque, já nem os partidos chamam tantos!
O Bruno levava na mão o cajado que ninguém passa; a Alexx, a Cruz das Gotinhas. O Miguel três faixas: cabeça e antebraços. Faltaram as das pernas, como prometera em Braga. Não por isso certamente, mas lá que caiu, caiu e lesionou-se… nas canelas e joelhos! Mas ó rapaz, então não sabias ter posto as duas faixas que faltavam!
Entramos na pequena praia cheia de lixo, lixo que o rio trouxe montanha abaixo e que o mar devolvendo recusou! Então, não é que o mar bebe o rio, mas bebe-o como quem cumpre um ritual de purificação. E não para o tragar ou anular! Cruzámos o lixo que um homem amanhava recolhendo a lenha mais grossa para secá-la! E chegamos à Prainha onde o mar lambia mansamente o rio. Desenhamos a Gotinha na areia e, depois das fotos, das muitas fotos!, rodeámo-la e rezamos. E rezamos juntos e com Teresa, que, como nos avisara, não devemos carminhar sozinhos: «Que ninguém reza por medo, antes por gosto.» É Teresa que o diz, que no-lo disse.
E depois ficamos a olhar o mar, a olhar o maaar, a olhar o maaaaaaaaaar. A ouvir o pio fininho do rio e a olhaaaar o maaaaaaaaaaaaaaaaaar! Ooooooooooooo mar!
Da outra margem, desde as tascas e esplanadas, também nos viam. Mas nós não víamos que desde lá nos viam tolinhos!
Depois da praia a marginal
Deixámos a praia, chegámos à margem e seguimos pela marginal. Foram uns curtos quilómetros. Passámos pelos bares, pelas tascas, pelas esplanadas. Passámos pela Lota, pelo Portinho, pela nova Capela, pelo Forte. Entrámos pela via peatonal que nos aguardava garbosa, e sempre à beira-mar metemos por um caminho selvagem e depois por outro mais selvagem e por um troço de rebos bem redondos que dificultavam a carminhada. (E não é que alguém gostou de caminhar sobre eles?) Chegámos por fim à Capela de Santo Isidoro e ali diante do olhar do Santo Doutor e padroeiro da Internet – se não me engano – parámos e silenciámos. Bem parar parámos, silenciar é que quase não. Mas por lá ficamos a esmo, dispersos nas fragas mais que batidas pelo mar! Agora tinham-nos elas ao colo a nós, meninos e jovens, com ânsias e sonhos, com salmos e Teresa no coração. Passado um tempo – houve quem quisesse mais, mas a manhã ia adiantada – partimos de novo. Agora, para a visita a Santo Isidoro, uma capela inesperada, despojada e bela. O santo recebeu-nos no seu seio. E ali aprendemos o silêncio. Aprendemos que tantos e tão juntos podíamos fazer um diálogo de amigos em silêncio.
E fizemos.
De novo pelo centro de Âncora
Fizemo-nos de novo ao caRminho. E por outro caminho voltámos ao centro de Âncora. Aqui os das tascas pegaram nas bicicletas pela mão e vieram ver a seita! Admirados com surpreendente «ranchinho de gente nova» vieram perguntar-nos quem éramos e porque levávamos uma Cruz connosco. A Sónia Ferraz fez de porta-voz. E bem. Ficaram satisfeitos com a resposta dela. E lá fomos. E ala, que se faz tarde e o prémio é para quem se mete ao carminho!
Fomos andando, andando. Passámos de novo pela Capela da Senhora da Bonança em direcção à parte mais rural da localidade. E subimos, subimos até ao secular calvário que Âncora tanto venera e de que tanto se orgulha.
Depois de subirmos uns largos minutos lá aparece a colina com um bem proporcionado Calvário. Passamos por ele sem muito olhar, é verdade. Porque a verdade é que era já tarde e impunha-se um assalto às lancheiras que cheias nos aguardavam. E lá fomos deixando as rezas e o turismo para um pouco mais tarde.
Um almoço bem almoçado
Abancámos no monte rico em sombras e sol – e como andávamos todos sedentos de sol! – entre a Capela do Calvário, a Capela da Senhora de Lurdes, um anfiteatro ao ar livre e a enorme Cruz lá do alto reinando sobre nós.
O almoço foi descansado, com tempo. Saboreado a gosto. Porque existem prazeres a que é preciso dar lugar, e depois de tantos dias de chuva e de encarceramento em salas de aula e gabinetes de trabalho, como bem sabe o ar puro, o sol quente, a erva fresca!
Gostei muito daquela refeição – e quem não gostou! Pela serenidade, pela paz, pela calma, pela partilha, pelo muito tempo para comer! Sem stress. E também isto é de grande valor e ajuda muito à amizade e à oração. Percebê-lo é perceber o êxito das carminhadas.
Entretanto, chegou a Beatriz que nos veio trazer os pais. O número cresceu, portanto.
Entretanto, uns e outros, rodando por aqui e por ali fizeram apressar o relógio. Motivos não faltavam: Tudo ali nos falava muito: o monumento do Imaculado Coração de Maria, os cruzeiros de Bulhente e de São Roque, o São Salvador do Mundo e a sua Capela, a Senhora das Dores, a inesperada Capela de Nossa Senhora de Lurdes, a natureza, o sol!
Bem junto à Cruz
Depois, como se tivéssemos combinado, lá nos fomos juntando sem faltar alguém. E daí, desde um enorme balcão que nos mostrava todo o mar de Âncora subimos ao ponto mais alto da carminhada até junto duma alta cruz que para lá nos chamava. Subimos, subimos. E a Beatriz ao colo do pai.
Só parámos bem lá cima, bem no alto, bem junto da cruz, para rezar novamente com Teresa, que nos disse «que quem começa a subir o monte da perfeição nunca caminhará sozinho.» E era verdade, duplamente verdade, visivelmente verdade.
A vista era maravilhosa, o corpo restabelecido e confortado rezou a gosto. O sol, o calor, a erva fresca, o ar puro, a vista fantástica, as mimosas floridas, o azul do céu, o mar sereno, os amigos, as amigas. Tudo, tudo ajudava a rezar, a dar graças: «Obrigado, Jesus, porque fazes nascer e crescer em nós o teu amor.»
Permanecemos ali um bom bocado. Que eu apreciei e gozei bem. Mas como ninguém era dali, lá tivemos de descer. De botar os pés ao caminho a fim de nos aproximarmos do fim.
Junta ao Dólmen
Descemos suavemente o monte, percorremos um par de ruas já percorridas, para um pouco ao lado nos determos no monumento nacional do Dólmen da Barrosa – a saber, sete pedras bem imbrincadas que suportam uma laje de 12 toneladas! Crê-se que a construção é datada de há mais de três mil anos antes de Cristo!
Foi aqui celebrado um bom momento. Os dólmenes são monumentos funerários cuja construção visava a sepultura de chefes e guerreiros notáveis.
Reverentes, homenageámos, portanto, os nossos avós que nos despertaram para a crença na imortalidade e nos despontaram a aurora do além.
A história atravessa o inesperado das nossas carminhadas, e passar pelo Dólmen da Barrosa foi um achado único. O círculo que o abraçou foi duma perfeição tão plena, como agradável foi aquele silêncio aos que agora são silêncio para nós, e festa entre eles.
Rumo à igreja mãe
Saímos em silêncio daquele lugar sagrado. E já bem longe daquele lugar é que se começaram a ouvir as primeiras vozes. O respeito é bonito, sim senhor.
Não tardaria muito e chegávamos à matriz, a igreja mãe de Âncora, que, até quase ao século XVIII se achava «situada no meyo da frequezia».
O tempo era basto e suficiente, para quê correr. Mas a Maria João impôs um curto intervalo de trinta minutos. Tempo suficiente para rematar conversas, beber um sumo, descansar as pernas e o corpo, alindar a igreja.
À entrada aguardava-nos envolto em silêncio solene e grave o Pároco João Martins Baptista, que nos acolheu muito afavelmente, nos saudou calorosamente, nos apresentou a sua freguesia, nos convidou a entrar e connosco concelebrou a Eucaristia.
E entrámos, mas não logo logo. Só a tempo de cumprir as ordens da Maria João.
Descobrimos um novo oceano
A Missa começou a horas, presidida pelo Frei João Costa. E cantada por nós num coro de quase mil vozes. Como de costume demorou muito, não o parecendo de todo. À homilia falámos muitos de nós, partilhando a experiência recém-vivida. Uns mais faladores que outros todos se desembaraçaram. Depois veio o Frei João, que, a seu jeito, já nos tinha chamado mal-educados. Calma, calma, que ele só queria dizer da nossa pouca inclinação para o silêncio e a interioridade, para a busca e o encontro com o Amigo no mais profundo centro de nós. Também nos lembrou a beleza do rio Âncora a entrar no mar, para nos dizer que se somos como um rio que carminha, e que o mar é afinal o imenso Deus maior que milhões de mares vezes mil milhões de mares! E que esse Deus vive dentro de nós, num oceano que se chama alma. E então, com palavras inesperadas, umas, e apaixonadas, todas, desafiou-nos a como o Âncora entrarmos confiantes por esse mar adentro, a ir entrando, entrando, entrando, passando o vão duma porta e depois os corredores todos até passar as sete portas e chegarmos ao centro mais centro onde está o Amigo e Senhor nosso, o prémio dos prémios.
Disse isto e mais. Muito mais. Por isso não sei se ele concorda como o resumo – ele saberá. Mas disse mais ou menos isto e ainda nos contou uma história – que ele terá de contar-nos outra vez; e a anedota duns homens que empurraram o Farol de Ílhavo. E tudo isto numa Missa. (Por alguma razão elas nunca mais acabam!)
O apelo ficou feito. Falta agora saber quem se anima a caminhar por esses mares (quase) nunca dantes navegados, quem se atreve a descobrir caminhos novos que só o Espírito pode verdadeiramente ajudar a descobrir.
A Missa terminou a dançar a Estrela Polar à volta do Altar, e até o João, outro João, o mais velho João de todos dançou. Distribuíram-se recordações, uma belas recordações ancorenses que valem um valiosíssimo prémio tal o amor com que os nossos amigos as fizeram. São umas gotinhas azuis com uma âncora e as três estrelas do nosso Escudo do Carmo. Engenheiros, hein!
A igreja ficou vaga a tempo de às sete e quinze receber a comunidade paroquial para a Missa Vespertina.
A Maria Emília teve ainda tempo para se nos revelar como leiga consagrada e de nos desafiar para a experiência dum retiro jovem, em Fátima. A ver vamos. O convite ficou feito.
Seguiram-se as despedidas, mais despedidas e mais despedidas. As que iam para longe, mais rápidas. As de perto, mais distendidas. Comeram-se as últimas sandes, o que é um bom sinal. Sinal de que o Carmo Jovem carminha bem, desgasta e desbasta muito e se alimenta melhor. E ala que se faz tarde! Tão tarde que já estamos com saudade da próxima. Em Paços de Gaiolo.
Porque esperas para nos dar novas, Maria João? Vamos a isso, que o difícil é começar…
GOTINHAS (+)
O sol – Há quem tenha dito mais que uma vez: «Que pena sermos tão poucos!», e afinal éramos quase noventa! «Que pena outros não aproveitarem!», e nós chupámos tudo até ao tutano! E houve quem tivesse recebido chamadas a lamentar-se por não ter tido coragem de vir connosco!
Foi um dia brilhantemente fantástico, como o sol!
Dez anos - Havia quatro meninas de dez anos: A Bárbara de Braga, a Inês de Moinhos, a Margarida de São Salvador, a Rita de Darque. Dez anos são poucos anos, mas elas são mulheres de garra e provaram-no ao chegar na frente e gostar muito de aprender.
Carlitos - A Célita e o Carlitos vão ter mais um bebé. Esperam um Carlitos, mas venha o que vier é bem-vindo ao Movimento, acha o pai e nós também. O Carlitos antes do Pai Nosso ensinou-nos o que é ser pai: é ser frágil! É ficar-se muito frágil, antes do nascimento, durante e depois. Um abraço ao Carlitos que por estes dias anda triplamente frágil. E, parabéns.
PINGOS (-)
A queda – Ninguém viu, mas o rapaz escorregou na erva verde e esfolou os joelhos. Ainda andou uns quilómetros, mas ao passar por casa foi curar-se. Depressa deixou as boxes para se nos juntar e desfrutar do resto do dia. Ainda bem, mas sem sofrer era bem melhor.
A música – Não há no Movimento quem toque, nem quem queira tocar-nos o coração com o júbilo e a exultação da música. Mas houve harmonia e serenidade, e só isso é tão saboroso como a música. Graças a Deus.