sábado, 26 de fevereiro de 2011

A história continua...Santa Teresa de Jesus, cap XVII

XVII

A MÃE E OS FILHOS

Em 24 de Agosto de 1562 conseguira Santa Teresa, como já vimos, à custa de dissabores sem conta, inaugurar na cidade de Ávila, para religiosas, o seu pequeno convento de S. José, berço da Reforma da Ordem Carmelita. À fundação deste mosteiro seguiram-se outras, mas a Santa Reformadora não andava ainda satisfeita; é que não tinha realizado por completo, naquela altura, o seu sonho dourado. Ela queria e pedia incessantemente a Deus que os frades do Carmo aceitassem também a Reforma, tal qual as freiras. Mas, como meter-se uma mulher a reformar homens? Isto nunca ninguém tinha visto na Igreja de Deus. Onde encontrar vocações? Como arranjar casa para uma obra dessas? Era isto o que preocupava Santa Teresa naquela altura e o que tratou de resolver a pouco e pouco, mas começando logo no primeiro dia da sua partida de Ávila, mal chegou a Medina del Campo.
Tanto os Descalços como as Descalças Carmelitas chamam “mãe” a Santa Teresa, e com toda a razão; tanto àqueles como a estas deu ela a vida reformada do Carmelo. A Madre Teresa sente-se escolhida para esta grande obra e, como tudo fia de Deus e nada de si, lança-se, intrépida mas prudente, à realização desta empresa. E assim, escolherá ela os homens aptos para isso, dar-lhes-á suas instruções para observarem com todo o rigor a Regra primitiva quanto à oração, jejuns, abstinência de carnes, austeridade, solidão, isolamento do mundo. Ela própria, com suas filhas, lhes talhará o burel, pobre, curto, de estamenha; procurará convento para eles; irá visitá-los de vez em quando, como mãe solícita e moderará com descrição os rigores das suas penitências.
Mais. Quando desabar a tormenta sobre os seus filhos, os Descalços, ela mesma os defenderá desassombradamente dos seus inimigos, mostrando a toda a gente a inocência, a vida austera, irrepreensível dos Descalços, escrevendo ela, se tanto for preciso, ao próprio Rei da Espanha.
É este, ao que me lembra, caso único na História da Igreja: uma mulher a meter homens na ordem, isto é, na observância perfeita da Regra primitiva duma Ordem Monástica das mais antigas e gloriosas. Teresa, porém, é também única, a mulher extraordinária por excelência, a mulher-prodígio.

*

No entender da Madre Teresa, os alicerces da Reforma Carmelita deviam ser estes: noviças com muito bom espírito, prioresas ciosas da observância regular e frades descalços para dirigirem as Descalças. Já tinha bastantes noviças e Superioras à medida dos seus desejos; o que importava agora era formar descalços para guias das descalças pelos caminhos de Deus.
A Santa Reformadora começou por pedir a necessária licença ao P. Geral da Ordem, Fr. João Baptista Rubeo, quando da sua passagem por Ávila em 1567. O prelado, homem de invulgar talento, grande servo de Deus, como lhe chama Santa Teresa, e amigo de toda a Reforma, anuíra de muito bom grado ao que se lhe pedia, concedendo à Santa Madre, por meio duma patente assinada em Barcelona, de regresso a Roma, em 16 de Agosto de 1567, autorização para fundar, em Castela, dois mosteiros da Regra Primitiva, contanto que estivessem de acordo o Provincial, Fr. Alonso González, e o Prior dos Carmelitas de Ávila, Frei Ângelo de Salazar.
É notável e digno de registo o documento do P. Geral sobre este assunto. Nós desejaríamos, diz o Prelado, que todos os frades e freiras desta Ordem fossem espelhos, lâmpadas, tochas acesas, estrelas cintilantes para alumiarem e guiarem todos os homens que andam pelos agros caminhos da vida...
Não é fácil dizer o júbilo de que se sentiu dominada a Santa Reformadora quando soube desta memorável patente que tanto honra seu autor, o P. Rubeo. Santa Teresa já não esperou mais. Deus o queria, e assim pôs mãos à obra.
Em Medina del Campo foi ter com o Prior do Carmo, Frei António de Herédia, que logo aceitou o convite para ser o primeiro Descalço, frisando que a Reforma da Ordem vinha mesmo ao encontro dos seus desejos e propósitos, pois que tinha resolvido já recolher à Cartuxa de Segóvia, dar-se todo a Deus e fazer austera penitência.
A Santa Madre agradeceu-lhe a oferta que não podia ser mais generosa nem mais sincera, mas ficou meio hesitante, a cismar... e marcou-lhe o prazo de um ano para ele experimentar, praticando aquilo que ia prometer e professar.
O P. Herédia, figura de grande relevo na Ordem, era já velho, tinha 58 anos... e assim dificilmente se poderia adaptar por completo à vida austera de descalço; apesar de suas excelentes qualidades de inteligência e coração, não parecia ser esse o homem destinado a pedra fundamental da Reforma.
Por aqueles dias apareceu no convento de Santa Ana de Medina um frade novo, inteligente, discreto, muito fervoroso, mas um tanto pequeno de corpo; tinha apenas 26 anos e andava concluindo os estudos na Universidade de Salamanca: era Fr. João de Yepes.
A Santa Madre mandou-lhe dizer que lhe queria falar à grade da clausura das Descalças. Lá foi ter com a Reformadora o jovem universitário. Conversaram sobre o mesmo tema, expondo-lhe Madre Teresa, pormenorizadamente, seus planos de Reforma. Será este o homem providencial escolhido por Deus para pedra fundamental do edifício? – dizia de si para si a Reformadora, quando lhe falava, fitos seus grandes olhos na fraca silhueta daquele homem, que já tinha qualquer coisa de grande.
Conta-lhe a Madre Teresa a vida reformada que levavam as Descalças, sua quase contínua oração, jejum, penitências, afastamento dos seculares, toda a austeridade que queria implantar nos mosteiros da Reforma.

Frei João sorri: Isso é pouco, queria mais – diz. Mal termine no ano próximo, os estudos teológicos, já tenho licença dos meus Superiores para ir para cartuxo.
Mostrou-lhe, então, a Santa Madre a glória que daria a Deus, se se reformasse dentro da Ordem Carmelita sem necessidade de ir procurar fora o que tinha dentro da sua casa. Frei João fita a Madre Teresa, através da grade de ferro, como para lhe penetrar as intenções e, de novo sorri... Sim, sim, está bem – replica o jovem Carmelita. Concordo plenamente e aceito, mas ponho uma condição: que não haja demoras.
As Descalças de Medina estavam, naquela altura, na hora do recreio, depois da refeição do meio-dia. Chegou toda radiante a Reformadora e disse-lhes assim: Oh! minhas filhas! Já tenho, para a reforma dos nossos Padres, frade e meio.

Qual seria o meio frade? Porventura Frei João, pequeno no físico, mas grande, gigante no espírito, que satisfazia por completo os desejos e exigências da Madre Teresa para levar a cabo a obra ingente da Reforma, ou Fr. António de Herédia, bela figura de homem, de maneiras polidas, com nome feito na Ordem e os seus 58 anos... que não satisfazia completamente à Madre Teresa? Seja como for, a verdade é que estes dois frades foram os primeiros filhos espirituais da Santa Reformadora, os pilares da Ordem de Carmelitas Descalços fundada por Santa Teresa de Jesus. O P. António, que morrerá com 91 anos, passando 32 na Reforma Carmelita a ocupar sempre altos cargos, vai assistir aos últimos momentos da vida preciosa de Santa Teresa no Carmelo de Alba de Tormes (1582), e recolherá também o alento final do futuro Doutor da Igreja, S. João da Cruz, no convento dos Descalços de Úbeda, em 1591.

*

Medina del Campo, Agosto de 1567.
Frei João de Yepes ou de S. Matias – era este o nome de S. João da Cruz, quando vivia entre os calçados – está com a Madre Teresa e as religiosas no locutório do Carmelo. Pode dizer-se que ele anda estes dias a fazer com elas a aprendizagem da vida reformada que, por sua vez, ensinará aos descalços quando for Mestre de noviços e Superior. Conversam na intimidade das almas santas. Do lado de lá da grade de ferro, a Santa Reformadora e suas filhas; do lado de cá, Frei João.
Mas, em determinada ocasião, a pedido da Santa Madre, aparece-lhes vestido de Descalço... pés nus, hábito curto e pobre, de estamenha de cor castanha, a mais ordinária. O burel foi talhado pela própria Madre Teresa e costurado pelas monjas. Nunca ninguém tinha visto um Carmelita com um hábito assim... É o primeiro Descalço que aparece no mundo... Dir-se-ia que é a imagem viva do homem contemplativo e penitente. O mundo, os anjos e os homens assistem, maravilhados e edificados a este espectáculo de grandeza moral inegável.
Passam alguns meses. A Santa Madre segue, na companhia de algumas freiras, para a fundação do Carmelo de Valladolid, como já vimos, e quer que as acompanhe Frei João, para que, na ausência do Capelão, P. Julião de Ávila, lhes celebre a Missa, as confesse e faça práticas. Temos aqui, na cidade do Pisuerga, a grande Reformadora, confessando-se e tratando as coisas do seu espírito com Frei João de S. Matias, que apenas contava 26 anos; tão prudente, fervoroso e adiantado na vida reformada o encontrou Santa Teresa que resolveu mandá-lo sozinho para Duruelo arrumar a desmantelada casa ou casebre, que havia de ser, no mundo, o primeiro convento de Carmelitas Descalços.
Teve de ir para lá só, porque o P. Fr. António de Herédia não tinha ainda sido dispensado do múnus de Prior de Santa Ana de Medina. Saíra para Duruelo nos últimos dias de Setembro de 1568, levando fixas na sua memória todas as recomendações da Santa Reformadora, para dar alguma forma de mosteiro àquela desconfortável casa que lhes doara D. Rafael Mejia Velázquez, grande benfeitor da Ordem e admirador da Santa Madre.
Duruelo era um lugarejo quase ermo, situado na província de Ávila, distante uns 40 kms de Valladolid, ao pé da rica e progressiva vila de Bracamonte. Tinha apenas 20 fogos.
A tal casa para convento de frades não era mais que a humilde moradia do caseiro de D. Rafael, que cultivava aqueles terrenos. Já a conhecia a Madre Teresa, porque já a tinha ido visitar propositadamente com o P. Julião de Ávila e outras pessoas amigas. Achou-a adaptável ao fim a que se destinava, mas sem nenhum conforto. Porém, como Fr. António e Fr. João tinham grandes desejos de penitência, não hesitou em aceitá-la.
Lá esteve Fr. João dois meses dirigindo os trabalhos como arquitecto e mestre-de-obras, transformando em mosteiro de Descalços aquela casa que Santa Teresa chamou em frase lapidar “Presépio de Belém”. Quer dizer; não tinha mais conforto que a lapinha de Jesus em Belém.

As dependências eram estas: uma sala, logo à entrada da porta, que Fr. João destinara a Capela; à direita de quem entra, um quarto tão estreito e baixo que mal se podia estar nele de joelhos, e que serviria de coro; à esquerda, um outro aposento que, feitas algumas divisões, daria para celas dos frades, com uma pequenina janela que dava para o Santíssimo Sacramento, e mais uma cozinha rural. Isto é tudo. De resto, só se viam por todos os cantos cruzes de madeira, de papel, de todos os tamanhos e feitios, e caveiras humanas.
Limpo o pobre conventinho e munido de utensílios e apetrechos de sacristia oferecidos pelas Descalças de Medina, inaugurou-se a fundação, e começou com todo o rigor a vida reformada no primeiro Domingo do Advento, 28 de Novembro de 1568, com a presença do Provincial, Fr. Alonso González, que rezou a Missa de comunidade. Finda a Missa, Fr. António de Herédia, que tinha chegado na véspera, Fr. João de S. Matias e mais Fr. José, que era ainda diácono, todos carmelitas descalços, muito sensibilizados e de joelhos aos pés do Prelado, renunciaram solenemente à mitigação da Regra concedida por Eugênio IV, prometendo observar a Regra Primitiva da Ordem dada por Santo Alberto, Patriarca de Jerusalém, aos monges do Monte Carmelo e confirmada por Inocêncio IV. O resto e as palavras do Provincial, amigo de toda a reforma, facilmente se podem adivinhar... Não houve mais.
Cerimónia esta singela, sem nenhuma pompa, mas cheia de significado e de enorme projecção espiritual na Santa Igreja. Era nada mais nada menos que o reflorir do Carmelo entre os frades da Ordem de Nossa Senhora.
A Santa Reformadora não assistiu à cerimónia inaugural, mas sentia-se feliz, por ver realizado o seu sonho. A vida dos filhos de Santa Teresa, a partir desta data memorável, foi um misto de oração e penitência, num ambiente de solidão e silêncio. Andavam literalmente descalços, sem alparcatas, que a Madre Teresa já tinha concedido às religiosas, como medida de prudência. Erguiam-se todos os dias à meia-noite para rezar Matinas no coro, perante o Santíssimo Sacramento, ficando muitas vezes em oração até ao romper do dia, em que de novo reunia a Comunidade para as Horas Canónicas. E quantas vezes lhes chovia ou nevava sobre os hábitos, naquele presépio com aparência de convento!
Jejuavam de 14 de Setembro até à Páscoa, todas as sextas-feiras, nas Têmporas do ano, e ainda em muitas vigílias de grandes festas, designadamente de Nossa Senhora. A abstinência de carnes não tinha quebra.
Tomavam disciplinas uma, duas, três vezes por semana. Oravam, meditavam, estudavam a Sagrada Escritura aqueles primitivos descalços e ainda iam pregar a palavra de Deus por aquelas redondezas, vivendo assim, plenitude, o duplo espírito do Carmelo, como lhes indicara o Superior Geral da Ordem ao conceder licença para a fundação. Por mais de uma vez foram pregar às freguesias vizinhas os frades de Duruelo e voltaram para o mosteiro, cansados, sem terem tomado coisa alguma, porque não queriam que ninguém os recompensasse, pois tudo faziam unicamente por Deus. Vida penitente, como a dos antigos moradores do Monte Carmelo, a dos filhos de Santa Teresa, em Duruelo. Tão penitente que, ao passar por lá a Reformadora em Fevereiro de 1569, a caminho de Toledo, recomendou encarecidamente aos Descalços que moderassem com prudência os rigores das suas penitências, para não perderem a saúde ou afastarem as vocações que podiam aparecer. Os filhos responderam à Mãe que timbravam em copiar o mais perfeitamente possível, na sua vida reformada, Jesus Cristo Crucificado, cujo nome eles reproduziam e lembravam nos seus apelidos. Com efeito, o velho Prior de Medina quis chamar-se, no Carmelo Reformado, Fr. António de Jesus, e assim será conhecido entre os Descalços; Fr. José, o diácono, de Cristo; e Fr. João de S. Matias, esse trazia a ideia da crucificação com a sua cruz, pois, propositadamente escolheu chamar-se Fr. João da Cruz. E a história diz que os três Descalços souberam viver e realizar maravilhosamente seus respectivos nomes, e fazer, juntos, um Jesus Cristo Crucificado.
Seria diminuir a verdade dos factos se pretendêssemos ocultar aqui a impressão salutar de devoção que causara a Santa Teresa e às pessoas que com ela foram visitar Duruelo a contemplação do conventinho e igreja. “Logo que entrei, fiquei surpreendidíssima ao perceber o espírito que lá tinha posto Nosso Senhor. E não só eu, como também os dois comerciantes que tinham vindo comigo de Medina, pessoas amigas, não podíamos deixar de chorar. Tantas cruzes, tantas caveiras humanas!”.
Antes de sair de Duruelo, o P. Provincial nomeou Fr. António de Jesus Vigário da comunidade e, crescendo mais tarde o número de frades, resolveu elevar aquela residência dos Descalços à categoria de Priorado, escolhendo Fr. António para Prior do convento, e Fr. João da Cruz para Subprior e Mestre de noviços.
Como o sítio de Duruelo era bastante insalubre e os religiosos começavam a adoecer, tiveram de mudar para a próxima vila de Mancera, onde era muito conhecido e estimado o Padre Prior Fr. António de Jesus, pelos seus sermões e trabalho apostólico. Realizou-se a trasladação da Comunidade processionalmente com toda a solenidade em 11 de Junho de 1570, acompanhados os Descalços pelo clero e fiéis. Nesta data eram já 15 ou 17 os membros da comunidade Carmelita, rezam os anais do convento. O P. Fr. António, pregador de grandes recursos e fino recorte literário, e S. João da Cruz continuavam a espalhar por aquelas planícies castelhanas a boa semente do Evangelho, realizando grandes conversões, principalmente nos arredores de Mancera onde o Prior do Convento tinha pregado os sermões quaresmais em 1569.

Os Conventos dos Descalços iam aumentando, bem como os das Descalças, com grande consolação para a Santa Reformadora, a quem disse um dia Nosso Senhor que veria florescer esta Ordem, como nos conta nos seus relatórios a Beata Ana de S. Bartolomeu, secretária e enfermeira dedicada de Santa Teresa.

Quando ela redigia em Toledo o capítulo 13 do livro das “Fundações”, isto é, entre o ano de 1577 e 1580, diz a própria Santa que havia já fundado dez mosteiros: Duruelo, Pastrana, Mancera, Alcalá de Henares, Altamira, La Roda, Granada, La Peñuela, Sevilha e Almodóvar del Campo. E levando em conta que este último foi inaugurado em 1575, podemos concluir que, no breve lapso de sete anos – tinha começado a Reforma dos frades em 1568 – foram fundados estes dez mosteiros de Descalços. Deus Nosso Senhor, como se vê, não podia abençoar melhor a seara da Madre Teresa.
Vêm aqui a propósito as suas palavras: “Estas casas, na sua maior parte, não foram fundadas por homens, mas foi a mão poderosa de Deus que as fundou”.
Como os Descalços, nos começos da Reforma, não tinham constituições e em cada convento se procedia como bem entendia o Superior, em 1576, o Comissário Apostólico, Frei Jerónimo Graciano, redigiu umas Constituições. No dizer de Madre Teresa, era natural que os reformados interrogassem amiudadas vezes a Reformadora sobre o que se devia praticar nos seus conventos. Não é fora de propósito notar aqui que o P. Fr. António de Jesus, ocupando quase sempre altos cargos na Reforma, nunca fora da plena confiança de Santa Teresa como S. João da Cruz, o P. Jerónimo Graciano e outros insignes Descalços. Tinha muitos pergaminhos, e parece que até chegou a ser indigitado para bispo, mas nunca o chegou a ser, ainda que não lhe faltassem grandes predicados, vasta cultura, vida interior e um fino e impecável porte social.
Durante a terrível tormenta que desabou sobre os Descalços e a Santa Reformadora (1577-1580), foi a própria Santa Teresa quem defendeu com todo o desassombro os seus frades, levando a causa ao conhecimento do próprio Rei de Espanha, D. Filipe II, que logo acudiu em sua defesa. Felizmente, tudo terminara com o triunfo estrondoso da Madre Teresa e de seus filhos ao conceder-lhes o Papa Gregório XIII absoluta independência dos Superiores Calçados (1580), como já vimos.
Um dia em que Santa Teresa pedia encarecidamente a Nosso Senhor, no convento de S. José de Ávila, o progresso espiritual da sua Reforma, diz o autor de “Serafina do Carmelo” que teve a Santa Reformadora um êxtase e o Senhor lhe fez saber quatro preceitos que deviam observar os monges desta Ordem: primeiro, que houvesse conformidade entre os Prelados; segundo, que os conventos tivessem poucos moradores; terceiro, que os frades e freiras tratassem pouco com os seculares; quarto, que se ocupassem mais de obras do que de palavras. Ficaram assim superiormente traçadas as linhas gerais do espírito que devia informar a Reforma do Carmelo, no correr dos séculos.

*

Santa Teresa era de um zelo verdadeiramente apostólico; tinha mesmo alma de apóstolo. Já em pequenina, deu provas disso quando fugira da casa paterna, rumo à Moirama. Por isso costumava dizer que mil vidas daria ela por uma das muitas almas que se perdem; e foi justamente para ajudar os que defendem a Igreja que ela fundou os seus Carmelos.
Ora, seus filhos não podiam deixar de andar santamente contagiados desta sede de almas. É esta, sem sombra de dúvida, a razão por que, já no Capítulo da Separação, celebrado em Alcalá de Henares (1581), em que foi eleito Provincial o P. Jerónimo Graciano – o que muito alegrou a Santa Madre Teresa – triunfou a ideia de auxiliar as Missões Católicas, aventada e defendida pelo Provincial contra uma certa corrente de opiniões chefiada pelo P. Dória que sustentava a preponderância, na Reforma, da vida contemplativa, com quase exclusão da vida apostólica, ou, pelo menos, da obra das Missões.
A Ordem Carmelita é contemplativa, é certo, mas não deixa de ser também apostólica. Pelo menos assim a concebeu a sua Santa Reformadora.
Era em 1560... O protestantismo grassava na Europa como um flagelo. Lutero deformara; Teresa reformara. Teresa de Jesus, diz Edgard Luinet, foi o verdadeiro adversário da Reforma protestante. Fundou uma Ordem para combatê-la pela acção, pelas lágrimas, pelo amor; numa palavra, pelo apostolado.
Santa Teresinha, com a nítida visão de que o Espírito Santo a dotara, desde a infância, acerca das virtudes sobrenaturais, assimilara perfeitamente o espírito da Fundadora do Carmelo. Sabia que, alistando-se entre suas filhas, entrava na carreira apostólica. “Vim para salvar almas e, sobretudo, para orar pelos sacerdotes”, disse no exame canónico que precedeu a sua profissão. Além do mais, preside hoje às Missões Católicas uma Carmelita Descalça, a própria Santa Teresinha, na qualidade de Padroeira escolhida e proclamada pela Santa Igreja, tal qual como S. Francisco Xavier, o que quer dizer que a Santa Igreja considera a Ordem de Santa Teresa como apostólica, pois, de outro modo, não escolheria um dos seus membros para zelar os interesses das Missões no mundo inteiro. Por isso, o P. Jerónimo Graciano, formado na escola da Madre Teresa de Jesus com quem privava mais do que ninguém, adiantando-se três séculos, com alta e nítida visão da realidade, já em 1582, 1583 e 1584 mandou, sucessivamente, três levas de missionários carmelitas para Angola e Congo, das quais, infelizmente, só a terceira conseguiu aportar às costas da África Equatorial. O Ven. P. Francisco do Menino Jesus, alma e chefe da terceira expedição, se dermos crédito ao testemunho de velhos manuscritos, chegou a baptizar ele só mais de 100.000 pagãos.
Em Sumatra, ilha de Java, foram martirizados no século XVIII dois ilustres missionários do Carmelo: o P. Dionísio da Natividade (francês) e o Irmão Redento da Cruz (português), beatificados em 1900 por Leão XIII.
Veja-se o que escrevemos algures sobre “Missões Carmelitas”.
Nos centros de Missões Carmelitas vegetam hoje 9 milhões de infiéis confiados pela Santa Sé ao zelo dos filhos de Santa Teresa de Jesus.
Vamos encerrar este longo capítulo com chave de ouro, pois outra coisa não representam estas notáveis palavras do imortal Pio XI sobre o zelo apostólico dos Descalços: “De forma alguma queremos que passe despercebida a influência que exerciam os Carmelitas Descalços na Congregação da “Propaganda Fide” para cuja fundação muito concorreram, não só com os seus conselhos como também com os seus trabalhos e esforços junto desta Sede Apostólica, como afirmam as actas de Clemente VIII, Paulo V e Gregório XV”.

[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]