Coração que ama ainda que durma está vigilante. Foi assim que às 6h19 deste Sábado, dia 15, recebi uma mensagem dizendo que «aqui chove». Aqui era em Caíde. No meu aqui também chovia e eu também acordara com a chuva.
A chuva será a marca do dia. A carminhada de Caíde, a segunda que ali fazemos, esteve sempre com chuva ou no horizonte ou por cima de nós. Ao levantar-me espiei o horizonte e o céu de 600m2 que os vizinhos me deixaram livres e a alma alegrou-se-me com o sol luzente que se pressentia. Afinal vai estar bom, pensei.
Fiz-me à estrada, sozinho, cantando e louvando o Senhor porque tudo corria às mil maravilhas. Mas...
Mas em aproximando-me do norte a coisa mudava de figura. O sol perdia-se, desvanecia-se, não penetrava nas nuvens escuras e densas como chumbo denso. Cheguei ao Porto e a chuva era intensa. Parei. Parei 40 minutos. Parei, mas não a chuva.
Em Caíde andava tudo numa fona, a pôr a terra linda para os estrangeiros. E seriam muitos! Em Caíde de Rei não chovia e dali me reclamavam, mas eu pensei que seria uma questão de minutos até a poeira assentar. E, por fim, também ali começou a chover e o pessoal recolheu-se na Igreja de São Pedro. Não, qual quê! Nã, senhora! Em Caíde não havia desanimados, mas crentes. Afinal o padroeiro é São Pedro, o dono das chaves. E eles sabem bem que o Santo tem muitas obrigações e uma delas — digamo-lo assim — é mandar chuva, que os lavradores bem precisam dela. E ele mandou. Abriu generosamente as torneiras do céu e choveu regularmente naquele início de manhã invernosa.
Um dom
A receber-nos estava o Pároco de São Pedro, Padre Fernando Carvalho, que se encontra a celebrar os vinte e cinco anos de paroquialidade e os oitenta e um de vida! Haja alegria e Deus seja louvado na vida do seu servo.
Creio existir nos velhos um dom que só a idade permite revelar. Vejo-o bem no Padre Fernando Carvalho, que conheço há talvez 10 anos. E o dom é este: os velhos que Deus amadura (e se deixam amadurar nas mãos de Deus) acreditam nos jovens! Eu sinto-o nele e por ele alargo-o aos outros. Quando cheguei à sacristia saudou-me tão feliz que para cumprir todo o preceito só faltou contar-me a última anedota do cardápio (não houve tempo!), pois sempre tem uma nova para me contar!
— Olhe, ainda dizem que não há fé, ciciou-me. Claro que há! É cedo, está a chover e estão ali os jovens da Paróquia. Há coisas assim. Veja como cantam! E isto é só o ensaio. Claro que há fé, há muita fé nos jovens e quando assim é o mundo está salvo. Estou contente por os ver assim, animados, preocupados, com vontade de carminhar. Isto é a casa deles, é o mundo deles. Estamos aqui para eles.
A mim restava-me ouvir e agradecer e foi o que fiz, intimamente.
— Então vão caminhar, não vão?
(A pergunta talvez fosse desafio, talvez uma pontinha de inveja, ou até censura...) Acabei respondendo que o tempo não é coisa que se desafie, que seria o que Deus quisesse. Mas para além de caminhar caminhos e palmilhar quilómetros há uma carminhada interior a fazer, bem maior que a outra, atirei-lhe.
Não houve tempo para resposta, porque, entretanto, chegara a embaixada da Figueira da Foz formada por um autocarro, duas carrinhas e dois carros. Havia que recebê-los e não havia como inventar. E como só num sítio não chovia entramos todos para a Igreja de São Pedro.
Falta dizer que o lema da carminhada era Sigamos o Rei. Ora, apesar da decepção da chuva, a ideia mais positiva era segui-l’O onde e como Ele quisesse ser seguido. Assim seria. Assim se faria.
Também falta dizer que existe um Plano B pensado para estas situações. É um plano inclinado para o interior, que não dá para muito tempo. Dá, porém, para muito mais que o simples entreter e ninguém poderá dizer que não se carminhando fisicamente se cai no vazio.
O Plano B
Foi assim que passámos à execução do Plano B. A saudação foi mais calorosa e espaçada, a oração da manhã mais mastigada e saboreada. Foi tudo mais. Até o Plano B, que não se dirá aqui todo entrou neste mais! Depois das saudações e das oportunas instruções do Speaker que foi pondo água da chuva fria na fervura, falou o Padre Carvalho. Não, não, dizia ele! Eu não concordo nada com o Speaker Ricardo! Se a chuva cair todo o dia haverá carminhada na mesma! Porque há uma carminhada interior a fazer e ninguém pode dispensar-se dela!
A assembleia que lotava a Igreja Paroquial bateu palmas. Tenho para mim que não perceberam todas as palavras, pois o que eles querem é comer caminhos! E a coisa ficou por ali. Lá fora a chuva caía, cá dentro saía de cena quem não era de cena e pusemos a rolar a fita do Plano B. Havia silêncio.
Cá atrás, bem atrás da cortina, estava eu junto ao Sacrário. Ali está o Rei. Que seria que Ele queria? Iria parar a chuva? Qual seria a alternativa? Como refazer o programa sem defraudar?
Terminada a fita terminara o plano. E o tempo seguia concentrado e amorrinhado. Só havia uma solução: libertar a multidão, dar um tempo para desopilar, cheirar o tempo, e decidir.
Durante o intervalo reuniu-se o Estado Maior da coisa e tomou-se uma decisão prudente: caminharíamos dois quilómetros e depois se veria. Não havia seguranças de nada, só esperança e vontade de caminhar. No fim dos dois quilómetros haveria um abrigo onde caberíamos todos, se necessário.
A sorte protege os audazes
Não foi necessário. A sorte protege os audazes (e não desampara os prudentes). Ao chegarmos à linha do combóio não nos refugiamos na protecção do cais da estação, mas decidimos avançar, cruzar a linha, fazermo-nos ao monte como as cabras. Iria ser um monte duro de roer. Lá em cima, no meio da subida, havia outro refúgio preparado para as eventualidades. A Maria da Luz e a Fernanda, irmãs que noutros tempos carminharam andanças como estas, abriram-nos a casa para o necessário. E foi assim que em vez de dois quilómetros fizemos quatro, sendo que os segundos dois foram sempre a subir, até à Fonte Santa, que fica no coração dum monte. Da fonte não vimos nada e de santidade também não. Mas rezam as crónicas que aquelas eram águas boas e sadias, que calmavam sedes, tonificavam e devolviam forças e saúdes. Deve ser verdade, até porque o povo do lugar lamenta as ervas bravias que não deixam ver a água nem chegar-se a ela. Mas ninguém as limpa!
Foi ali à sombra da fonte que aproveitando uma suada pausa nos dispusemos para a oração. O carminho tem destas coisas, não se exercitam só os músculos e os pulmões, também o coração e a alma. Em redor havia tojo arnês, o mais maldoso de todos os tojos. Por isso, ficamos dispostos e quietos numa clareira que parecia propositada. Quem inesperadamente nos visse diria que éramos um rebanho em descanso sereno, ora alinhado ora agrupado por famílias, quer dizer por grupos de origem e afinidade.
Terminada a oração devolvemos pés ao caminho e cruzamos de novo uma floresta de eucaliptos que exalavam aquele cheiro característico que ao entrar nos pulmões os purifica. Chegávamos de novo a casa da Fernanda e da Maria da Luz. E era hora de comer. Por isso, ala a estender mantas pelo empedrado do caminho ou em volta da fonte ou a aproveitar a garagem da casa e as mesas generosamente ali dispostas com toalha e tudo! (Creio que não esperavam tantos convivas, mas ainda assim a delicadeza do gesto foi marcante!
Sem medo
Depois dum repasto repousado sob cerejeiras a despontar e com uma aldeia em fundo, preparávamos as pernas para andar quando nos vieram dizer que uma nuvem anunciava chuva. E era verdade. Recolhemo-nos todos na garagem e como não se pode estar sem fazer nada toca a rezar. Rezamos uma dezena, a prometida, e finda esta voltamos de novo ao caminho que por ser a descer se fez mais rápido, até porque para baixo ajudam todos os santos e o vento também. Não fazia frio, não fazia calor. O grupo Sementinhas conduzia o rebanho e livrava-nos dos carros. As estradas eram secundárias e municipais, mas o povo tem de fazer a vida e claro foi para os carros que as estradas fizeram. Mas nós éramos tantos...
Agora que penso nisto, três coisas me prenderam a atenção neste carminhar pós-prandial.
Um: os jovens já não dizem caminhada, dizem carminhada. Já não dizem padre, mas frei. Há palavras que vão passando, interrogações que vão germinando e rebentam quando rebentam. Agora sabem que existem paróquias e conventos e ordens religiosas. Não é muito nem é tudo, mas já é alguma coisa porque eles sabem que há algo mais ao nível da experiência da fé para além do que se costuma viver e celebrar.
Dois: A carminhada da tarde foi bastante longa e dura: ora descíamos muito, ora subíamos muito. Assim se cumpria o que estava escrito no texto de lançamento da carminhada — Sigamos o Rei — e que se pode confrontar no que segue:
Sigamos o Rei!
Desçamos ao vinco dos vales, bebamos fontes.
Sigamos atrás de muito mais que a fantasia:
subamos promontórios e montes,
subamos com amor e com alegria.
Sigamo-l’O. A viva água
serena desça dos olhos ao coração
e banhe em nós os rios imensos de mágoa
e banhe em nós os cofres de solidão.
Sigamo-l’O a vida inteira
aonde quer que Ele vá.
Sigamo-l’O como a vez primeira,
Sigamo-l’O ontem, hoje e amanhã.
E assim foi, de facto. Descemos e subimos várias vezes, porque várias vezes se acercou e outras tantas de nós se afastou o horizonte. Mas o que mais me espantou foi que, para além de jamais o cajado ser ultrapassado (uma das regras das carminhadas), no pelotão da frente iam os miúdos do 6º Ano da catequese de Caíde de Rei e a Catequista logo atrás. Eram miúdos de 11 e 12 anos, muito rijos, muito certinhos e direitinhos. Estou certo que lhes fez muito bem a carminhada e a mim fez-me muito bem vê-los a carminhar em grupo, solidários com a Catequista e connosco. Estou como o Padre Carvalho: «Claro que ainda há fé, então não se vê?»
Em terceiro lugar apreciei muito o trabalho dos Sementinhas sempre preocupados connosco, atentos aos cruzamentos perigosos, às curvas e ao trânsito, ao vento e ao sol, à sede e aos pesos. Gostei e é sinal que quando mais carminhamos mais aprendemos que o mais importante é chegarmos todos bem ao fim. O bem de um é o de todos. Aqui o elogio vai também para os carros-vassoura, que, como é habitual, estiveram à altura da função e da dignidade do pelotão.
Mandinga
E depois desta parte encomiástica que aqui só fica por dever de ofício e para representar o quanto foi dura e longa a carminhada da tarde, fale-se agora da pausa merecida ao cimo da terrível encosta da Subida do Crasto.
Antes de re-entrarmos na aldeia impunha-se uma pausa e um descanso para não chegarmos a casa esbaforidos e a cuspir os bofes. Foi o que fizemos. Depois da encosta do Crasto repousamos e retemperamos as forças sobre um generoso tapete fofo de relva macia. Mas não foi descansar por descansar. Aproveitando o reagrupar dos grupos lemos o conto Mandinga que se publicará noutro lugar e que fala do seguimento do Senhor até ao seu Reino. Depois de lido e brevemente comentado escutámos a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, segundo São Mateus. Desamparados de tudo e de todos os apegos e só com ramos de oliveira nas mãos, em silêncio e recolhimento escutámos o Evangelho. Acto seguido retomamos o caminho em silêncio. Caminhamos assim durante 15 minutos, entrando e cruzando parte da aldeia até, sossegados, nos determos aos pés do altar da Igreja Paroquial onde rezamos a oração da tarde. Restavam escassos 25 minutos para ultimar a Eucaristia, afinar vozes, gargantas, violas e dedos. Refrescar as têmporas, bebericar um gole d’água, ajustar um ramo ou uma túnica.
A Eucaristia
A Eucaristia foi iniciada com uma bela procissão com ramos de palmeira nas mãos que seguiam a bela Cruz Paroquial. Depois de benzidos os ramos saudamos longamente a Cristo que mansamente entrava na Jerusalém dos nossos corações. Logo após escutamos a Palavra de Deus, particularmente a longa Narração da Paixão do Senhor. Não menos longa foi a homilia do Frei João. Ao longo do dia tínhamos sido vastamente catequizados, pois Deus falara abundantemente e de muitas maneiras, mas connosco estava reunida a comunidade de Caíde de Rei. A estes nossos irmãos (e também a nós) o Frei João procurou despertar para a alegria de acompanhar o Rei até ao fim sem jamais nos determos, sem jamais adormecermos. Oportunas palavras! Porque se é verdade que os primeiros discípulos cederam à doce tentação do cansaço, também não é menos verdade que hoje, muitas vezes, frequentemente, nos embrulhamos nas asas do sono e O deixamos ir só. E Ele vai. E se acaso, vai só.
— Já é hora de acordar! Não é hora de dormir! Acordemos!, concluía a homilia.
Houve ainda tempo para rezarmos pelos pais (este ano a Festa de S. José foi antecipada para o dia 15!) e de saudarmos o Padre Fernando Carvalho. O Movimento do Carmo Jovem, pelas mãos e coração da Verónica Parente, que ali se deslocou de Viana do Castelo, apesar dum pé partido, saudou o venerando sacerdote depondo nas mãos do seu conselheiro Agostinho Martins uma pequenina cruz de prata. Uma coisa nos atrai neste sacerdote que se encontra em jubileu: a maneira como acolhe os jovens, a maneira como sempre abraça o Carmo Jovem, a maneira como nos anima a carminhar, a maneira como nos abre as portas e as deixa abertas até nos pedir que as fechemos nós. (As correntes de ar constipam em todos os lados!)
Terminamos a Eucaristia era já quase noite. Faltava recolher tudo, que nisto procuramos ser exímios: deixar os locais por onde passamos ou repousamos melhor que quando os encontramos. Satisfeita a premissa perdera-se um telemóvel importante. Mas como quem anda com Deus até o vento lhe junta a lenha, logo apareceu sem se rezar o responso a S. António.
Mordidas as últimas sandes e porque já as galinhas descansavam no poleiro, foi hora de regressar: uns para Avessadas, outros para Braga; uns para Caíde, outros para Nespereira; uns para Aveiro, outros para a Guarda; outros para Viana; e outros muitos para Alhadas, Esperança, Maiorca, Moinhos da Gândara e Santo Amaro, que são freguesias e comunidades da Figueira da Foz.
Quando entrava no carro de regresso, o S. Pedro piscou-me o olho desde o cimo do pórtico principal da Igreja Paroquial. Julgo que não me enganei, e o Santo lá sabe. A missão fora cumprida, com um bom sentido de dever e de amor.
E é isto que o escriba escreve. E o escriba escreve o que viu e noutros casos julgou ouver. Aqui não se diz tudo e até bastaria bem menos. Outros escreveriam outro tanto e até mais e melhor. Ficará para a próxima.
Resta dizer que nesta carminhada estreámos a Gotinha das Carminhadas: é a Gotinha do Movimento com dois pés dentro da gota dispostos a subir o monte.
E de alguma maneira nos podemos apropriar também de um novo lema que o Padre Carvalho nos entregou ao saudar-nos: Deixai-me ir que o mundo vai sorrir ao ver-me passar!
E por fim se deve dizer, porque das outras vezes também foi dito: éramos mais de 200 jovens a carminhar em terras do Rei! Aqui o escriba não teme errar e funda-se em factos.
Que o Senhor nos continue a animar a segui-l’O por mais duzentas carminhadas, mesmo que elas só tenham quatro ou cinco carminheiros!
Páscoa feliz para todos.
Que sempre sigamos o Rei. Amen.