sexta-feira, 11 de novembro de 2011

VI ENTREFITAS > Notas Finais


ÁGORA, by Alejandro Amenábar

Entre amigos estivemos no Sábado.
O Carmo Jovem reuniu-se em Caíde de Rei para mais uma actividade, desta vez o VI Entrefitas.

Éramos para lá de muitos – de Avessadas, de Caíde, daqui e dali, de Paços de Gaiolo, de Braga… – e de Viana do Castelo tínhamos uma nova contratação, o Simão, que esperemos que volte e revolte porque não admitimos desistências!


À chegada, a Sónia recebeu-nos em sua casa com um delicioso jantar. Das panelas em cima do fogão a lenha, saía um cheirinho maravilhoso, todos os temperos e aromas de uma comida feita com amizade. Não faltaram as castanhas estaladiças e um genuíno Porto para rematar. A D. Sílvia, mãe da Sónia e da Tuxana, está de parabéns, e muito agradecidos estamos a esta família que, com o Sr. Alexandre Ferraz à cabeça, sempre nos recebe à farta! Avisámos que éramos cinco mas aparecemos oito e o manjar multiplicou-se e dava para muitos mais. Mistérios da cozinha? Artes mágicas da cozinheira? Não! Partilha e amizade carmelita no seu melhor.

Mas a hora adiantava-se e era necessário seguir até à sede da Junta de Freguesia, onde a sessão de cinema nos esperava. Ágora, de Alejandro Amenábar, era o filme proposto pelo Coordenação do Movimento.


A sinopse da película informa que o mesmo se passa no século IV., no Egipto, sob o poder do Império Romano. Ali, violentos confrontos sociais e religiosos invadem as ruas de Alexandria… Presa entre paredes, sem poder sair da lendária Biblioteca da cidade, a brilhante astrónoma, Hypatia, com a ajuda dos seus discípulos, faz tudo para salvar os documentos da sabedoria do Antigo Mundo… Entre os discípulos, encontram-se dois homens que disputam o seu coração: o inteligente e privilegiado Orestes e o jovem Davus, escravo de Hypatia, dividido entre o amor secreto que nutre por ela e a liberdade que poderá ter ao juntar-se à imparável vaga de cristãos.

À medida que o filme passava na tela no meu pensamento fervilhavam algumas considerações que, nos últimos tempos, me têm suscitado interesse.


A primeira prende-se com o facto de constatar que vivemos num tempo em que é de bom tom não ser Católico, não ir à Missa e muito menos cumprir os rituais sagrados. A presença na igreja reduz-se àqueles momentos tidos como inevitáveis, ou seja, um amigo que casa ou um familiar que morre, casamentos, baptizados e funerais e pouco mais. Mesmo os católicos praticantes sentem por vezes um grande constrangimento em assumir a sua crença entre os seus pares.

Vivemos no século da tecnologia e do mundo virtual, do rápido acesso à informação, do consumismo desenfreado de tudo o que é de desgaste rápido e não implique esforço de entendimento. Achamo-nos por isso mais livres, pois temos tudo o que queremos e, salvo excepções, quando queremos. Chegamos até a pensar que já bastaram as restrições dos quarenta anos de ditadura salazarista e da trilogia Deus, Pátria, Família e de tudo o que isto implicava. A laicização do Estado, proporcionada pela Revolução de Abril, parece-me mal interpretada. Melhor dizendo, a liberdade de escolha, neste caso de um credo religioso, num Estado democrático foi sendo substituída por esta nova forma de imposição, invisível, é certo, porque não é legislada mas emocionalmente sentida pelos crentes, de que frequentar a Igreja é sinónimo de obscurantismo, de pequenez, de inculto, de tacanho.

Considero ainda que os meios de comunicação social, na ânsia de proclamarem um mundo livre, enchem-nos os olhos com um variadíssimo leque de programas de qualidade duvidosa. Em nome da liberdade de escolha tudo é possível e permitido. E no desejo desenfreado de esclarecer a população, deturpam a verdade histórica, destacam, com uma certeza pouco certa, histórias mal contadas, momentos menos bons da instituição Igreja, para provocar a sua “derrota”, para aniquilar os seus princípios, para despertar as pessoas destas, perdoem-me a expressão, tretas que a Igreja ensina.

São sobejamente conhecidos filmes e livros em que, qual fórmula mágica, se tentam desmontar os Evangelhos, a veracidade da vida de Cristo, da Virgem ou dos Santos Apóstolos. É certo e sabido que falar mal da Igreja é um assunto que vende e aumenta audiências.

Esquecem-se as pessoas que não estão a ser livres. Na realidade, são manipuladas em nome da laicização do pensamento. Esquecem-se que a maior liberdade vem do conhecimento de Deus.

Esquecem-se que a maior liberdade está na possibilidade de escolha, em dizer: Sim, eu creio e por isso me comprometo. A liberdade está na capacidade de nos comprometermos perante algo maior, invisível, mas constante na nossa vida.

Um segundo aspecto que me paira no pensamento relaciona-se com o facto de a vontade do Homem conhecer e perceber o mundo é tão antiga como a existência do próprio Homem. Desde cedo, as primeiras comunidades humanas criaram rituais relacionados com a adoração de (um) deus, porque perceberam a necessidade de existência de uma entidade superior capaz de criar o universo.

Ao longo da História da Humanidade, cada civilização foi criando as suas fórmulas para explicar as razões do aparecimento do Homem, do mundo, da terra e qual a posição desta no cosmos. E era na religião, politeísta ou monoteísta, que os seres humanos encontravam os fundamentos para a existência. As teorias científicas mais recentes apontam o Big Bang como o momento inicial de explosão e posterior expansão do universo.

Religião e Ciência entravam assim em confronto. Aliás, o filme visionado mostra efectivamente este confronto: Hypatia não é aceite na comunidade porque não assume uma religião – nomeadamente a dominante, a cristã – nem afirma amar a filosofia e o conhecimento acima de tudo. Aliás, dedica a sua vida à procura incessante do conhecimento. Como uma religião.

Mas fazendo a análise mais pormenorizada da película, constatamos que as incorrecções históricas não foram esclarecidas ao comum dos mortais. Na realidade, pretende-se mostrar a brutalidade da actuação dos cristãos relativamente aos pagãos. De facto, não foi mencionado nem pelo produtor do filme, nem pelos tão esclarecedores meios de comunicação social, que a Biblioteca de Alexandria foi anteriormente destruída por um incêndio e não por cristãos revoltados e violentos, por exemplo.


O filme retrata uma época em que as discussões civilizadas da praça pública grega, a Ágora, tinham dado lugar à violência das turbas. As personagens, nomeadamente Amónio, Orestes, Cirilo e Sinésio são figuras históricas, retratadas com alguma veracidade, mas não isentos de desvios factuais. Igualmente fidedigna é a descrição de Theon, o pai de Hypatia. Theon foi matemático famoso. Era bibliotecário em Alexandria e deixou vários comentários, ou seja, textos clássicos rescritos e desenvolvidos de forma a poderem ser difundidos e estudados. Sabe-se que Hypatia colaborou com ele em algumas edições, nomeadamente nas Tabelas Práticas de Ptolomeu e na Aritmética de Diofanto. Pouco mais se sabe sobre esta figura romântica da história da matemática. 

 O filme é primariamente crítico do Cristianismo primitivo e perde por esse primarismo faccioso. Além disso, afasta-se da realidade quando fala das investigações de Hypatia. A matemática e astrónoma alexandrina aparece como tentando conciliar o modelo heliocêntrico de Aristarco com o modelo geocêntrico de Ptolomeu. Todavia, não há nenhuma base para essa presunção. O modelo de Aristarco era então apenas uma curiosidade algo absurda, e só muitíssimo mais tarde, em 1543, foi reavivado com o trabalho de Copérnico.

Por fim, destaca-se no filme ainda o apriorismo da luta entre religiões e entre o fenómeno religioso e a ciência. A luta inter-religiosa foi uma constante na História: pagãos/cristãos, cristãos/judeus, cristãos católicos/protestantes, cristãos/muçulmanos, entre muitos outros e vice versa.

Todas se afirmaram detentoras da verdade. Todas se assumiram como religiões válidas e exclusivas. E não o serão para os seus crentes, desde que cumpram na íntegra os seus princípios? Não seríamos todos nós muçulmanos se tivéssemos nascido numa cultura muçulmana? 


 Este assunto traz-me à memória a vontade de João Paulo II em promover o debate inter-religioso. Além disso, parece-me que o mesmo Papa tentou aproximar a Fé da Ciência. E não podemos esquecer os esforços recentes de Bento XVI, que a 27 de Outubro, 25 anos depois, na cidade do Poverello, Assis, repetiu o gesto do seu Antecessor, ao reunir 300 representantes religiosos e académicos de 50 países para, juntos, «afirmar a dimensão espiritual como elemento chave para a construção da paz».

As teses modernistas acreditavam que a religião iria perder a sua influência nas várias esferas da vida social à medida que as sociedades se modernizassem e passassem a confiar na capacidade da ciência e da tecnologia. Porém, apesar de a religião ter perdido influência na esfera política, ela não está a desaparecer – e menos ainda nas proféticas «duas gerações» subsequentes! Ela continua a evidenciar uma centralidade e uma transversalidade nos vários domínios do social. Continua a unir e a dividir indivíduos, a desempenhar um papel poderoso e motivador na vida de muitos deles.

Assim sendo, o diálogo entre religião e ciência continua em aberto. Muitos autores defendem que a fé religiosa, o sentido da existência humana, são problemas para os quais a ciência não pode encontrar respostas. Já no século XVIII, Kant considerava que não se pode saber se Deus existe mas pode-se ter a certeza moral de que existe.

Paralelamente a estas questões, destaca-se ainda no meu pensamento a importância do ecumenismo. Foi no seio do Cristianismo que surgiu pela primeira vez a preocupação do diálogo entre as religiões. O ecumenismo, ou seja, o debate inter-religioso tornou-se um tema de debate, presente no discurso político e com grande interesse mediático. O trabalho ecuménico é valorizado e reconhecido como um instrumento que poderá contribuir para encontrar um caminho para a paz.

Por isso, e porque o texto vai longo, como longa foi a noite do Entrefitas, e para concluir, perguntamos: Será por ser fixe ou cool que em geral todos criticam a fé cristã? Que para afirmar a independência da razão se destrói a fé e a religião, usando termos e meios arcaicos e medievais, tantas vezes esconjurados à Igreja como ignóbeis? Que estatuto dá não molhar os dedos em água benta nem ajoelhar-se diante do Santíssimo?


Por isso, Jovens Carmelitas, venha o próximo. Debate e filme.