quarta-feira, 7 de maio de 2008

CRÓNICA DUMA PEREGRINAÇÃO ANUNCIADA (III)

Dia 2 - 2 de Maio
Permanecei em mim e eu permanecerei em vós.

São cinco horas da madrugada. É negro lá fora. Não é negro cá dentro. Ouvem-se tun-tuns suaves correndo todas as portas das celas. (Agora já se pode falar de celas, porque os peregrinos já sabem que as celas não são celas.) Os corpos resistem a erguer-se, mas acabam de pé. O meu erguer do esqueleto é um não sei como é: inventei para mim um trejeito de saltimbanco que faria rir o pinheiro mais sisudo. Porém, a coisa resulta: dá para sair da cama, tirar o pijama, lavar a cara, vestir-me e ir até ao refeitório, pondo um pé à frente do outro. É tudo feito quase num só gesto enrolado, feito mais de adivinhas que de saberes. Tudo se queixa no meu corpo. Mas não haverá queixa que impeça o andar com Maria para Jesus. Foi isso que nos propusemos.
Estou a re-aprender a andar. As bolhas supõem uma alteração na equação do equilíbrio e do andar, mas o mais importante é que no fim caminhamos e o caminho lá vai sendo feito. O pequeno-almoço é frugal mas mais que suficiente para o caminho. Dali vamos rezar os Bons Dias ao Senhor e depois caminhar, primeiro em carrinhas que nos devolvem à EN 109 e finalmente a pé. É noite. É chumbo. É frio. Os camiões também peregrinam, furiosos, e ao contrário. Trazem vento e nevoeiro que atiram para cima de nós. É tão frio que a única solução é andar em fila indiana. Aqueles gigantes de ferro e pneus atiram-nos tamanhas golfadas de vento frio para cima de nós, que não há outra forma de caminhar senão, como diz a Regra, com uma armadura de pensamentos santos no peito.
Entretanto, já bailam dentro de nós as Pistas. Somos convidados a permanecer ao longo do dia. A fazer um acto de presença do Senhor. A estar atentos ao que possa ser sinal da Sua presença: um sorriso, uma mão amiga, uma palavra de incentivo, uma ajuda, um conselho, uma flor que se partilha, um versículo da Bíblia, um raio de sol, uma gota de chuva (houve pelo menos uma!), o passeio que se alarga, o canto ou voo dos passarinhos, os ribeiros, os campos, as pessoas, a manhã fresca ou a tarde quente, um pensamento santo, um voto… Existem tantas coisas que nos falam de Deus! Há tanta maneira de Lhe dizer Eu sei que estás comigo e Tu sabes que quero estar contigo!
Foi óptimo caminhar com a cela do coração desperta para a Presença maior que acordou o dia para nós e animou os nossos passos a caminhar!
Amanhã alonga-se e o caminho também. Aloooooooooonga-se muito, muito, muito mesmo. Mas a verdade é que as rectas da Tocha as comemos como quem come carapauzinhos de escabeche, que, como se sabe, depois de comidos não ficam nem espinhas! Num caminho assim tão longo que parece que atrai a solidão são importantes os carros de apoio, que são três. O sr. Branco repete a função e vai sempre a chamar-nos fraquinhos, «sois uns fraquinhos, vamos lá andar!». Também distribui água e bolachas. A Susana repete também a função. Quando está fora do carro, anda sempre aos saltinhos ou a recolher casacos e camisolas ou a dar água e a mimar. (Também nos ofereceu umas pedras grandes para caminhar, mas acabou a fugir de ter de as carregar ela!) Não me admira que dê saltinhos, o António Pedro, o marido, também caminha a pé. E claro, ela anda mais nervosa, porque a melhor parte dela (Deus me perdoe!) anda a ajudar o Pedro a caminhar! Por fim, também a Verónica nos ajuda. Vai ao volante duma grande carrinha. Não faz o trabalho que mais gosta, mas faz com gosto e com sentido de caridade o trabalho que faz. Não é esta a maneira que mais gosta de peregrinar (prefere caminhar) mas foi ali que Deus pediu que fosse e ela vai! (Embora tenha andado muito pensativa) Faz de tudo um pouco: fala, anima, encoraja, lê, põe música, recolhe informações, sugere alterações, cuida dos mais pequenos, cuida dos grandes, organiza os carros de apoio. E no fim, com gosto e a fazer caretas que assustam as bolhas, faz de fura-bolhas. Ainda hoje nos meus sonhos a vejo vestida de D. Quixote Fura Bolhas com a lança em riste! É a melhor fura-bolhas que conheço: vê uma e zás!, vê outra e zás, zás-pás-trás!, atravessa-as com a agulha dum ao outro lado. Quando nós guinchamos já ela furou a quarta e a quinta. A furar bolhas bate mais recordes que D. Quixote a combater moinhos! (E este é um trabalho que ninguém gosta de fazer. A coisa é de tal modo que quando vimos uma bolha botámos logo a fugir! Somos uns mariquinhas porque sabemos que elas nos podem perseguir! E porque o podem nem armados de agulha e linha as conseguimos encarar! Mas a Verónica, não! Zás, zás, zás, zás e zás! Quando damos conta já ela atou com a mesma linha 15 pés de 12 pessoas diferentes, depois de ter furado 144 bolhas!)
Chegamos por fim a Ervedal com uma hora de avanço. O Restaurante está no mesmo sítio e promete a mesma carne grelhada de há um ano! Comeremos com a mesma sadia vontade que temos quando comemos caminhos.
As Alhadas estão ali a dez ou doze quilómetros, mas ninguém quer lá chegar desfalecido. Por isso, abençoamos a refeição e comemos. E repousamos.
Estávamos postos em ledo post-prandium quando o sorriso da Alice Montargil nos surpreende e assalta. Vem passar revista às tropas, ela que é quem mais tempo leva de jovem carmelita! Vem também para partilhar connosco um café e o que falta do caminho. Já conhece muitos dos peregrinos e muitos outros não. Mas ficará a conhecer. Entretanto, o sol descobriu-se e está muito calor. O que vale é que haverá muitos pinheiros pelas veredas e a sombra promete ser caridosa connosco. Além disso vamos rezar o Terço, que será sempre a parte melhor do caminho. Mais uma vez será.
Na placa de S. Amaro da Amoreira não resistimos e tiramos uma foto. Aquele nome traz-nos boas recordações. É a partir dali que rezaremos o terço. Mas não sem antes as pessoas nos chamarem tolinhos três ou quatro vezes, porque «Fátima não é para aí!». E não será mesmo, mas nós sabemos que há «para aí» uma casa da Mãe, chame-se ela Fátima, Carmo, Clara, Maria da Luz, Teresa ou Alice. E foi mesmo por ali que fomos a rezar o Terço.
Chega por fim a Capela de S. Amaro. A porta está aberta e é ali que concluímos a nossa oração, cantámos e recebemos a bênção. O povo acorre, junta-se, quer-nos seduzir com água fresquinha (que aceitámos), mas não parámos porque os peregrinos foram feitos para andar. A meta ainda não foi alcançada e temos de partir mesmo. Pessoalmente apetece-me parar, mas a pior parte de mim diz-me que devemos andar porque depois custa imenso a pôr a máquina a vapor a andar. Apetece ficar ali com o povo, mas talvez seja melhor ir com Deus. Enfim!
Chegados às Alhadas homenageamos as padeiras (deve haver algures uma foto como prova). Depois fomos para a igreja paroquial. Ao perguntar onde fica a Igreja, as pessoas respondem: - Qual?, e têm razão, porque são duas, a Católica e a Protestante. Quando respondemos: - A de São Pedro!; dizem-nos: - Vão por ali. E fomos.
As portas da Igreja de S. Pedro das Alhadas estão fechadas e ainda não foi desta que fomos conhecer o Padroeiro. Subimos, pois, mais um pouco e parámos junto ás portas do Centro Social Água Viva. Está ali um magote de velhinhos que não sabe se rir se chorar. É que vamos chegando às pinguinhas, umas pinguinhas renitentes, cansadas e suadas, que não dá gosto nem ver. Os trejeitos dão para rir, as dores que se vêm dão para chorar. Mas julgo ler nas suas caras um desejo de amanhã partir connosco, nem que seja de cadeira de rodas.
Quando alcançamos juntar a tropa as meninas vão para o carmelo da Alice Montargil e os rapazes ficam-se pelo Centro. Havemos de nos reunir mais tarde para nova sessão de fura bolhas, para o jantar sempre sereno, alegre e familiar com os nossos amigos de Alhadas, para celebrarmos a Eucaristia e para o debate final sobre as presenças diversas de Deus no caminho.
Tragamos o jantar num piscar de olhos e logo nos vimos a celebrar a Eucaristia. Havia ali amigos e amigas de comunidades várias, que já nos conhecem doutras carminhadas. Conheceram-nos aqui e além e acham que somos um vírus. Não dizem se benigno, mas ao que parece a coisa não está para passar. Gostam de nos ver, de cantar e rezar connosco. O vírus pegou e tardará em sair. Reclamam que vamos mais além, que rompamos fronteiras. Reclamam e a ver o que se verá.
Na Eucaristia estão quatro jovens peregrinos de Alhadas que carminharão connosco amanhã e no decorrer da mesma chegarão três outros jovens peregrinos. Estes trazem com eles uma história engraçada: vêm a caminhar há largas horas, com o sistema de GPS ligado. Ao chegar a Alhadas resolvem seguir a intuição e não o GPS. Assim, quando ele recomenda virar à direita seguirão em frente. Ou ao contrário. Chegarão, sãos e salvos, à Eucaristia, depois de percorrer as tortuosas ruas da povoação. E em jeito de confidência dirão: «O GPS estava errado, por isso decidimos seguir a Estrela!» Seguiram? Parece que sim. O certo é que chegaram a tempo de receber a pedra com que amanhã terão de carregar no bolso ou na mochila. Entretanto a Eucaristia decorre e porque é dia de S. Atanásio, o presidente da celebração recorda a frontalidade e a resistência pela verdade de que este santo bispo foi perfeito modelo. E socorrendo-se ainda do número dezasseis da nossa Regra, recordou-nos insistentemente que a nossa vida de fé é um duríssimo combate que não devemos evitar, porque no fim lá está Quem melhor pode pagar. Terminada a Eucaristia e terminado o debate no Centro, regressaremos todos para dentro dos sacos cama. Urge descansar, porque o dia de amanhã avizinha-se longo, duro e cansativo.