terça-feira, 6 de maio de 2008

CRÓNICA DUMA PEREGRINAÇÃO ANUNCIADA

Os pés e os caminhos
Uma peregrinação começa antes de começar.
Os caminhos que havemos de caminhar já lá foram postos há muito, pelos muitos pés que os percorreram antes de nós. E os nossos pés que ainda não chegaram à comunhão com os caminhos vão ficando avidamente no apronto final. Antes da peregrinação tudo está em ordem. Os caminhos estão onde devem estar, os pés por onde devem andar. Mas como não se encontraram não há ainda a peregrinação que deve haver, para a qual todos nos motivamos. Oh! Mas quando os pés se juntam aos caminhos e os trilham há uma felicidade imensa! É uma glória!, porque os pés são para os caminhos e os caminhos são para os pés.
Quem julgar que foi de outra maneira que nos preparamos engana-se, porque foi assim mesmo que nos preparámos. Ansiávamos pelos caminhos, que embora lá, pareciam tardar em aproximar-se dos nossos passos. Ansiávamos por afagá-los com a mesma sentida ternura que uma mãe beija a palma dos pés do seu infante.
Mas no dia certo, o primeiro de Maio, os pés chegaram a tempo e os caminhos não se ausentaram para parte incerta. À saída do convento do Carmo de Aveiro lá estavam os caminhos certos e 15 pares de pés ansiosos por percorrê-los, conhecê-los e beijá-los. Sim, que os caminhos conhecem-se pelos pés que os caminham!
É a caminhar que vimos e é a caminhar que vamos. Isso é bem verdade, porque todos somos herdeiros e portadores de futuro.

Duas perguntas
Não é fácil fazermo-nos a uma peregrinação. É trabalhosa a sua concepção, judiciosa na sua concretização, doloroso o seu decurso. Ainda antes de nos fazermos ao caminho muitas coisas há a preparar, cuidar, pensar, decidir, recusar. Sobretudo se vamos em grupo. Há espinhos que recolher, recantos do coração para agrandar, mãos que amaciar, abraços que estreitar, sorrisos que limpar, beijos que adoçar, canções que afinar. É todo um programa de simplicidades complicadas.
Este ano, porque era a segunda vez que íamos a pé a Fátima, depararam-se-nos duas perguntas: 1) Vale a pena caminhar a pé e sofrer tanto? Será que Deus o quer? Por que não haveremos de fazer coisas mais úteis?; 2) Se já realizámos no ano passado este percurso porquê repeti-lo? Se já sofremos muito percorrendo o trajecto, porquê repetir as mesmas dores?
Perguntas inquietantes com respostas sempre algo insatisfatórias, sempre aquém de convencer. Mas que há que enfrentar para iluminar os passos a dar. Também os nossos.
A primeira resposta deveria ser muito mais elaborada, porém bastará dizer que Ele sofreu e sofreu muito. Muito sofreu porque muito amou. E tudo sofreu porque tudo amou. Sofreu no que caminhou, do princípio ao fim, da manjedoira à cruz. Se Ele sofreu por que não haveremos nós de sofrer? Se Ele ficou com o furo dos cravos nos pés, por que haverão de se ausentar dos nossos as bolhas e as entorses? Se Ele amou por que não haveremos nós de amar? E se todos amarem só duma maneira, só numa variante, só numa cambiante, que beleza e proveito há nisso? Porventura existe só o amor de mãe? E o amor fraterno poderá ser igual à filia? Não. Claramente não. É para que se completem e se conjuguem todas as cores do arco-íris do amor que existem peregrinações a pé a Fátima. Neste caso, a dos jovens Carmelitas.
A segunda resposta ainda que complexa é mais fácil. A resposta descobriu-a a Betinha ao terceiro dia. Ou pelo menos foi ao terceiro dia que a declarou: o caminho não é igual. Os quilómetros são os mesmos, as paragens foram as mesmas, quase tudo era igual, mas nós éramos diferentes. Tínhamos crescido, éramos os mesmos mas mais responsáveis, mais amigos, mais carmelitas. Como poderia o caminho ser igual? Ora se o caminho não é igual e nós não éramos iguais, porque haveriam de ser iguais as dores e os temores? Não seriam. Não foram.
Dizem os antigos muito antigos que a mesma água não passa duas vezes sob a mesma ponte. Nisso têm razão. E também nós temos razão quando repetimos que o caminho não era igual sendo o mesmo. As dores não foram iguais, mas percorremos o mesmo caminho com os mesmos pés. Mas pés mais maduros e mais afoitos. Os pés eram os mesmos e as dores foram diferentes. E o caminho era diferente sendo o mesmo. Porque a diferença está no olhar do coração e na maneira como as dores se incorporam na história de fé de cada um. O caminho serve apenas para subir á Cruz!
Para quem busca sensações e experiências diferentes basta-lhe apenas que tenha pés e vontade de se fazer ao Caminho!