sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Santa Teresa de Jesus - Cap.2



II Ensaiando os primeiros passos

O período da primeira infância, ao que parece, passou – se normalmente, pelo menos sem enfermidades graves.
Seus pais que eram virtuosos e tementes a Deus (é este o elogio que lhes faz sua filha) empenharam – se em dar-lhe uma educação aprimorada, solidamente piedosa, aproveitando a inclinação da criança para a virtude. Ontem como hoje, as famílias cristãs costumavam fazer os seus serões de inverno; num desses, talvez em 1521, deu-se um acontecimento notável, verdadeiramente digno de registo, que caracteriza bem a filha de D. Alonso de Cepada e o poder de sugestão que poder ter na gente moça a leitura de um livro.
Noite fria de inverno. O vento sopra forte, gelado, nas janelas e sacadas da casa de moradia do casal Cepeda-Ahumada. D. Beatriz estava toda entregue aos trabalhos normais. O marido punha em dia as contas, enquanto Teresa e Rodrigo, um dos seus nove irmãos, quatro anos mais velho do que ela, passavam os olhos pelas lindas gravuras do Flos Sanctorum, e soletravam como podiam aquele livro. Agora era um santo anacoreta que fazia vida comum com as feras no deserto ou vivia no tronco dum carvalho, como o carmelita Simão Stock; logo uma viagem, espelho de pureza, como Santa Inês; a seguir um mártir que é decapitado em defesa da fé e, dum momento para o outro, troca esta vida pela eterna, entrando no gozo eterno do Céu… Embevecidos com a leitura, acontecia, não raro, ficarem longo tempo a dizer para sempre, para sempre, para sempre… De olhos fitos no Céu… Os pais entreolhavam-se admirados.
Um dia estas duas crianças desapareceram da casa paterna.
Onde estariam Teresa e Rodrigo?
Ninguém sabia deles. Não estavam no palácio de Nunes Vela, padrinho da menina; também não se encontravam na residência dos primos, filhos de D. Francisco, que moravam paredes meias; nem andavam na rua. Que era feito deles? Ninguém o sabia.
As horas decorriam no lar paterno numa ansiedade torturante.
Nisto bate á porta o tio da Santa, irmão do pai; vem a cavalo, ofegante, com o peito a arfar, e traz consigo os pequeninos que se tinham perdido. Tinha – os encontrado do outro lado das muralhas da cidade, no sítio chamado Quatro Postes, na parte noroeste, mais além da ponte sobre o Adaja. Interrogados pelo Pai, logo responde com desassombro a pequena Teresa, mais esperta, que tinham saído ao romper do dia pelas traseiras da casa para irem morrer ás mãos dos mouros, em Marrocos, defendendo a religião de Cristo… É este o fruto da leitura da vida dos santos em almas bem formadas.
Aos sete anos Teresa quis ser mártir e ainda consegui conquistar seu irmão para que também o fosse.
Mais tarde, dirá a Santa na sua autobiografia, empenhada sempre em esconder virtudes e mostrar defeitos, que não realizara esta proeza por amor de Deus, mas apenas para comprar barato a felicidade do Céu e ir logo ver Jesus para sempre, para sempre, para sempre. Conquanto assim seja, não deixa de ser este notável episódio da sua infância uma das mais belas manifestações do amor divino no coração humano.
Murcha a flor da primeira ilusão, Teresa não desanima. Começa a sonhar com a vida dos eremitas, toda silêncio e austeridade, entre os penedos dum deserto; e assim, desce agora todos os dias ao jardim da casa, conduzindo pela mão Rodrigo que teima em só querer brincar com Teresa.
Está o jardim muito bem tratado; é o próprio chefe da família, D. Alonso de Cepeda, amigo sempre de flores e de livros, que olha por ele.
No pomar, junto á cerca, encontramos diariamente, á tarde, antes ou depois do lanche, Teresa e Rodrigo a brincar. Andam entusiasmados a construir ermidinhas, que logo se desmoronam, quando a aragem que acaricia as árvores é um bocadinho mais forte. A pequerrucha, muito engraçadinha, arvora-se em mestra-de-obras, enquanto seu irmãozito lhe traz toda a classe de material de construção: pedrinhas, palhas, areia. Raramente conseguem pôr o telhado ao minúsculo edifício eremítico.
Quando, nos dias abafados em que não corria ponta de ar, a diminuta contrução se mantinha, muito a custo, em pé, faziam Teresa e Rodrigo algazarra e grande festa. Radiantes de alegria pelo triunfo, convidavam o pai, a mãe, os criados todos da casa para virem apreciar os primores do seu trabalho.
- Isto que é? – perguntavam – qual o motivo de tamanha vozearia?
- É que andamos a brincar, Rodrigo e eu, como se fossemos eremitas – acudia Teresa. – Como já não podemos ser mártires, vamos agora tentar ser anacoretas.
Não nos deve admirar esta resposta da filhinha de D. Alonso. É ainda o salutar influxo das boas leituras no espírito de Teresa e Rodrigo, que em breve desaparecerá, abafado por outras leituras muito diferentes.

[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]