III
PASSATEMPOS E DEVANEIOS
PASSATEMPOS E DEVANEIOS
A Espanha atingira, no segundo quartel do século XVI, o apogeu da sua grandeza. O sol não se punha nunca nos domínios do jovem Imperador Carlos V. Todas as cidades espanholas vibravam de entusiasmo pelas descobertas e conquistas recentemente realizadas por destemidos navegadores e guerreiros nas Índias Ocidentais. Os espanhóis sonhavam então com a América, como os portugueses com o Brasil. Ávila, terra de cavaleiros e de cruzados, ia na vanguarda.
Nas suas ruas só se ouvia o ruído das esporas e o estrídulo retinir dos ferros. Era a passagem da flor da mocidade que partia alegremente, em ânsia de aventura, para Flandres ou para o Novo Mundo.
A literatura castelhana estava também imbuída dessas ideias. Nos serões de inverno, em volta da braseira consoladora, nas bibliotecas e em toda a parte, o povo espanhol lia romances de aventuras, contos guerreiros e narrativas interessantes de cavaleiros andantes. D. Beatriz, esposa de D. Alonso, lia-os também em sua casa, quer para se distrair, quer para procurar alívio para as suas mágoas. Um dia, passaram esses livros pelas mãos de Teresa e Rodrigo. E, com que embevecimento, com que avidez os folhearam! Como traziam gravuras de guerras, quadros de fidalgos cavaleiros, de mancebos garbosos e atilados que (como conta um historiador daquela época)5 , timbravam em ostentar, no boné, uma pena rara de ave para assim atrair os olhares de damas formosíssimas, que se enfeitavam requintadamente, Teresa começou a entusiasmar-se... e, o que é ainda pior, quis imitá-las.
Já não desce ao jardim a brincar com Rodrigo aos eremitas; já não repete, fitando o Céu: Para sempre, para sempre. Agora a gentil menina tem doze anos, doze primaveras floridas, e mudou de hábitos. Gosta demasiado de se mirar ao espelho, de tratar das suas lindas mãos, do seu penteado, dos seus vestidos, e usa perfumes, tal e qual como as meninas da sua posição social.
Ontem Teresa sonhava com o martírio ou com a vida religiosa, eremítica, num convento de rigorosa observância. Hoje, ao ver a vida entreabrir-se-lhe como uma flor que desabrocha, deseja agradar, atrair, ser admirada, quando vai passando aos domingos, depois da missa paroquial, acompanhada dos seus irmãos, junto à Porta do Alcázar, ponto de reunião e sítio de encontro dos rapazes e das meninas que hoje chamaríamos “da moda”.
Teria feito já Teresa a sua primeira comunhão? Não se sabe ao certo, mas parece que não.
A Santa nada diz sobre este pormenor importante da sua vida, na autobiografia admirável, modelo de sinceridade e de humildade, que nos legou. Os seus biógrafos, que são tantos e tão ilustres, dentro e fora da Ordem Carmelita, também não se deram ao trabalho de remexer em arquivos e velhos manuscritos para saberem, com toda a certeza, o dia – o dia maior na vida do cristão – em que Jesus entrara pela primeira vez na alma de Teresa.
Por este tempo, operou-se uma grande transformação no seu espírito e abandonou os seus primeiros sonhos.
Muito concorreu para isso a conversa diária com uma sua parente da mesma idade, um tanto leviana, que entrava e saía, quando bem lhe parecia, na residência de D. Alonso, hoje transformada em convento de Carmelitas Descalços. Foi esta malfadada parente quem a iniciou nos segredos dos devaneios femininos. Andavam sempre juntas e nunca se fartavam de conversas; tanto isto dava nas vistas da família, que D. Beatriz teve de as repreender por mais de uma vez, chamando sua filha à ordem. Teresa, porém, era esperta de mais e sabia muito bem como encontrar oportunidade de bisbilhotar com a sua amiga às ocultas da mãe.
E não foi só esta quem desviou Teresa do bom caminho encetado na sua infância; colaborou também decisivamente nesta obra um primo dela, filho de D. Francisco Sanches de Cepeda, que morava paredes meias. Como havia passagem pelo interior das casas, era contínuo o ensejo de se encontrarem. Conversavam à porta, no jardim, na sala de jantar, em todos os cantos. Nada receava D. Alonso desta amizade, porque, tanto ela como ele, tinham recebido aprimorada educação cristã e eram tementes a Deus; por isso, o pai de Teresa permitia o convívio, muito embora o não encarasse com bons olhos.
O primo sentia-se fortemente atraído pelo encanto de Teresa, inteligente e formosa que, com a sua graça, animava todos os jogos e conversas.
Teresa tem já 13 anos e não lhe escapa ser ela o enlevo do lar e o ídolo de irmãos e primos. Vê-se jovem, prendada, festejada por todos os que têm a dita de com ela tratar. O tal primo que a procura, esse não sabe sair da beirinha dela. Agora já falam a sós, na penumbra da sala de visitas, onde estão reunidos alguns membros da família, debilmente alumiados por uma luz mortiça. O primo não é capaz de esconder que gosta de Teresa e esta, por sua vez, sente o coração fugir-lhe. E parece – nota um biógrafo – que chegaram a pensar na realização dum sonho dourado ao pé do altar-mor da freguesia de S. João.
[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]