sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Santa Teresa de Jesus - Cap.6

VI

ESTA FILHA NÃO É PARA IR JÁ A ENTERRAR


Volvidos alguns dias, Teresa veste o hábito de noviça carmelita no mosteiro de Nossa Senhora da Encarnação de Ávila, em 2 de Novembro de 1536, isto é, com vinte e um anos de idade.


É dia de Fiéis defuntos. Ao longe, lá na cidade, ouve-se dobrar a finados, mas o convento da Encarnação, esse está em festa. Festeja-se a tomada de hábito da filha de D. Alonso, D. Teresa de Ahumada. Pela encosta, da banda norte em direcção à ponte sobre o Ajates, vem descendo, com a alma em alvoroço, um grupo compacto de pessoas. É D. Alonso, alguns dos seus familiares, diversos parentes e meia dúzia de jovens amigas da jovem. Querem assistir à cerimónia que breve vai começar. Já estão todos colados às grades de ferro do coro baixo das religiosas, com os olhos bem arregalados. Ouvem-se vozes e melodias como de anjos em revoada... São as freiras carmelitas que vêm pelos corredores do mosteiro em duas fileiras, envergando suas magníficas capas brancas, como em dias de grande solenidade, e com os rostos velados, a cantar hinos litúrgicos... Uma rapariga, de olhos negros e penetrantes, dizia, toda enlevada, que parecia ser aquilo uma visão do Céu... No extremo do cortejo, vestida de branco, como uma noiva no dia das suas bodas, vem Teresa, ladeada pela Superiora da Comunidade e pela mestra das noviças. Mostra o rosto sereno, um tanto ou quanto transfigurado pela emoção interior, com um sorriso doce e suave, mal disfarçado, a florir-lhe nos lábios, sinal certo da alegria que lhe vai na alma. Cantadas as últimas estrofes do hino litúrgico, ajoelha Teresa aos pés da sua Superiora, que já está sentada no meio do coro, e dá logo início à cerimónia da tomada de hábito. O momento é empolgante, especialmente para D. Alonso; vê sua filha com o hábito da SS. Virgem do Carmo... Fosse viva sua mãe, que tanto a estremecia! – murmura, enquanto enxuga furtivamente algumas lágrimas. Finda a cerimónia, todos querem cumprimentar e dar os parabéns a Teresa e a seu pai. Há festa e alegria nos corredores e locutórios do mosteiro. D. Alonso, que tem os olhos postos na que é o enlevo da sua existência, não quer faltar a sua filha com coisa alguma neste dia, que lhe ficará para sempre memorável; e assim, consoante a tradição conventual, faz ao mosteiro a oferta de velas da melhor cera, e oferece às freiras, companheiras de Teresa, novos véus.


*

Diz Santa Teresa15 que, vestido o hábito, experimentou uma tal alegria e contentamento, que lhe durava ainda na data em que escrevia. E não admira que assim fosse porque tomara o estado religioso que, como ela própria diz, é o mais seguro.


Animada destes sentimentos, encetara Teresa o seu ano de noviciado. Alguma coisa teve de sofrer da parte do inimigo comum das almas, além das saudades do pai, que lhe ralavam a alma. Mas tudo suportara com admirável fortaleza de espírito, considerando-se feliz na casa do Senhor.


As horas do dia eram consagradas à aprendizagem da vida monástica sob a direcção da mestra de noviças: exercício da oração, leitura espiritual, conferências, ensaios de canto e cerimónias, etc. Quantas vezes gastava ela em varrer os corredores e dependências do convento o tempo precioso que outrora ocupava em banalidades e frívolas conversas!


Não satisfeita com as penitências que a Regra Carmelita impõe às religiosas, não era raro ir, com licença da madre Mestra, ao quintal do mosteiro, pelo lusco-fusco, apanhar alguns espinheiros, dos mais bravos, para mortificar a carne no recanto da sua cela. Até chegou a dormir mais de uma vez, servindo-lhe de travesseiro uma tábua. Assim satisfazia Teresa, no noviciado, à Divina Justiça pelas faltas que, na sua humildade, considerava grandes pecados. Daqui lhe nascia chamar-se pecadora, avultar sempre suas culpas, tornar-se amiga e devota dos santos que, em vida, foram grandes pecadores, como Maria Madalena, Santo Agostinho, etc. É isto o perfume da verdadeira humildade, que se nota e nos prende, lendo os escritos desta mulher extraordinária.


E assim, orando, treinando-se na prática das virtudes religiosas e fazendo penitência por ofensas graves que nunca cometera, chegou ao termo do ano de noviciado, fazendo a sua profissão na Ordem das Carmelitas da Antiga Observância a 3 de Novembro de 1537.


Façamos um apanhado da obra espiritual realizada por Teresa no Castelo Interior da sua alma, neste breve lapso de tempo da sua vida e chegaremos à conclusão de que representa um verdadeiro renascimento espiritual. Nunca uma mulher começou a trilhar o caminho da virtude com tanta coragem como Teresa de Ahumada no convento da Encarnação, depois de feitos os desposórios com o Divino Esposo.


O ritmo de vida religiosa que segue a nova professa é impecável. Peregrina dum ideal, o da sua santificação, logo se torna notável entre as freiras do Carmo pelo seu fervor, pela observância rigorosa da Regra. Um belo dia, porém, tem necessariamente de quebrar esse ritmo. Teresa não aparece no coro... É que se não sente nada bem; parece atacada de grave doença; jaz sobre o leito sem movimento algum, mãos hirtas, olhos fechados, pálida, dando quase a impressão de que já não existe...


Entram apressadamente no convento os médicos; o pai da enferma, esse, fica à porta, impaciente, nervoso, à espera do resultado da consulta médica. As freiras agitam-se no corredor do mosteiro. Ora entram, ora saem do quarto de Teresa, levando e trazendo medicamentos, pensos, quanto é preciso.


– Sua filha, dizem os clínicos a D. Alonso ao saírem da Encarnação, é vítima dum forte ataque de coração. Urge tirá-la quanto antes o mais cedo possível do convento, para se submeter a um tratamento que de forma alguma se lhe pode dar lá dentro. Talvez uma curandeira célebre da terra seja capaz de lhe restituir a saúde.


Está dito. D. Alonso não hesita. Não se poupará a despesas nem a sacrifícios para salvar a vida da sua filha; e começa já a tomar as devidas providências para Teresa abandonar o claustro e para encontrar a mulher prodigiosa.


Seguindo o conselho do médico assistente, deixa passar uns dias até Teresa dar acordo de si e melhorar um bocado. Ele próprio quer acompanhá-la com alguns dos seus criados. Mas, para sua consolação espiritual, irá também com eles a grande amiga de Teresa, D. Joana Juárez. A jornada tem de ser feita a cavalo, único meio de transporte que, neste tempo (segundo quartel do século XVI) permitem aqueles terrenos montanhosos.


A enferma já está mais aliviada; e um belo dia põe-se a caminho, atravessando a ponte sobre o Adaja, rumo ao poente. A famigerada curandeira reside a 75 quilómetros de distância, mais ou menos, na vila de Becedas, embrenhada na Serra de Gredos, entre Ávila e Salamanca.


O itinerário que seguem os nossos viandantes foi previamente marcado assim: Hortigosa, Castellanos de la Cañada e Becedas. O frio por aquelas paragens, no mês de Dezembro, é de rachar. D. Alonso, que segue quase sempre à beirinha da mula que transporta Teresa, pergunta-lhe a todo o momento se está melhor, recomendando-lhe que se agasalhe bem.


Ao cair da tarde do mesmo dia, chegam a Hortigosa, onde mora D. Pedro de Cepeda, tio da enferma e irmão de D. Alonso. Aqui descansam alguns dias. D. Pedro que, como já foi dito, vivia enfronhado, desde que enviuvara, na leitura de livros de ascética e mística, dá à sobrinha alguns livros espirituais que mui salutar influência conseguiram exercer no espírito de Teresa. Mal podia supor aquele homem austero e penitente que sua sobrinha, amiga agora dos bons livros, havia de chegar a ser, no rolar dos tempos, a Doutora Mística da Igreja universal.


Numa boa jornada percorreram os nossos viandantes a distância que vai de Hortigosa até Castellanos. Neste lugar da serra eram esperados por D. Maria de Cepeda e seu marido, D. Martinho Barrientos, que se desfizeram em delicadezas e atenções para com Teresa. Aqui foram informados de que esta só podia iniciar o seu tratamento em Becedas na entrada da primavera. Estava-se então no começo do inverno... Ninguém contava com isto. Por isso, no intuito de não voltar a Ávila para não ter que fazer outra viagem, resolveu D. Alonso que Teresa ficasse lá, o que foi motivo de alegria para o casal Cepeda-Barrientos, porque tanto D. Maria como D. Martinho lhe eram muito dedicados.


E assim Teresa demorou-se em Castellanos, na companhia dos seus irmãos, cerca de três meses, sendo atendida, agasalhada e mimoseada por todos.


Ela, porém, que tinha entrado na Ordem Carmelita para tratar a sério da sua santificação, soube aproveitar aquele tempo precioso para continuar a trabalhar na construção do edifício da sua perfeição, purificando-se na dor, porque a doença seguia o seu curso... Quando se sentia um tanto aliviada, consagrava-se à oração e às leituras piedosas.


Chegou assim a primavera de 1538, vestida sempre de flores, viços e perfumes, anunciando aos mortais o ressurgir da natureza.


Um lindo dia de sol escolheu Teresa para fazer, embora com bastante dificuldade, a jornada entre Castellanos e Becedas, acompanhada agora de sua irmã D. Maria de Cepeda. Com que ilusão procuraria D. Alonso aqui e além, por toda a parte, aquela mulher prodigiosa que realizava curas extraordinárias! Só ela e mais ninguém, foi-lhe dito, era capaz de restituir a saúde à sua filha doente. Mas note-se, aquela famigerada curandeira não era parecida em coisa alguma com aquelas criaturas, impropriamente chamadas mulheres de virtude, dos nossos dias. Por isso, recorria a ela nesta aflição o pai de Santa Teresa. Além do mais, aquela época, que alguns historiadores denominam teológica, fiscalizada pela Inquisição, não teria suportado essa casta de mulheres no meio do povo cristão.


Feito o devido exame terapêutico, Teresa submeteu-se à tal curandeira. Purgantes diários, drogas esquisitas e medicinas caseiras de toda a espécie, por ela própria preparadas no seu casebre com ervas raras das quais só ela conhecia as virtudes curativas: eis as receitas que dera aquela médica a Teresa de Ahumada, para lhe debelar a doença do coração. Três longos meses cumpriu à risca a filha de D. Alonso as prescrições médicas daquela curandeira: tudo em vão. Teresa ia de mal a pior.


Não só as crises eram quase diárias e mais fortes, como todo o seu organismo ia sendo atingido, sobretudo os pulmões. Por isso D. Alonso, todo desapontado e sem quaisquer esperanças de salvar a filha, resolveu regressar com ela a Ávila. Ao menos – dizia – que morra na sua terra e na sua casa.


Mal chegou à cidade, agravou-se tanto a doença cardíaca, que Teresa ficou quatro dias privada dos sentidos, tal qual como um cadáver que jaz no leito da morte...


Como não dava acordo de si, alguém mandou cavar-lhe a sepultura no mosteiro da Encarnação, recomendando ao mesmo tempo que tudo estivesse pronto para o funeral... É que toda a gente a dava por morta e era de parecer que se enterrasse.


Só ao pai extremoso, escreve o P. Ribera, um dos mais ilustres biógrafos da Santa, não lhe consentia o coração levar a enterrar aquela filha, e dizia, opondo-se resolutamente ao comum sentir de amigos e familiares: Esta filha não é para ir já a enterrar17.


Desta vez, como se vê, somos forçados a afirmar que foi o amor de pai quem salvou a filha querida.


É que Deus reservava Teresa para grandes coisas.


[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]