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Portugal produziu, entre outras, duas obras-primas: o Brasil, com 61 milhões de habitantes, do outro lado do Atlântico, país com enormes possibilidades económicas, fadado a altaneiros destinos, e os “Lusíadas”, história sagrada dos feitos gloriosos dos portugueses. “Duas obras-primas deixou, também, o génio de Santa Teresa: o Castelo Interior e a carmelita que vive como ela viveu. Por mais fidalga que ela seja, vivendo da oração, da contemplação, no trabalho, no jejum, na pureza, na mortificação, na pobreza, na alegria sorridente e calma das almas angélicas, a carmelita é também uma obra-prima de Teresa”.
A vida da freira descalça na Ordem fundada por Santa Teresa, enclausurada entre altos muros e grandes cercas no mosteiro... é a coisa mais simples. Todo e qualquer Carmelo Teresiano é, na verdade, a casa de Deus por excelência, e uma porta para o Céu, pela prática constante da oração e da meditação e pela vida de silêncio que é, como disse alguém, a atmosfera das almas grandes. Asilo de paz, como há poucos na Santa Igreja. A oração e o sacrifício, são os dois pontos fundamentais da vida carmelita descalça, consoante o espírito da Santa Reformadora.
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Como me vi mulher ruim e impossibilitada de trabalhar como eu quisera – escreve Santa Teresa – no serviço do Senhor, toda a minha ânsia era, e ainda é, pois Ele tem tantos inimigos e tão poucos amigos, que estes fossem bons. Determinei-me, pois, fazer este pouquito que está em minha mão: seguir os conselhos evangélicos com toda a perfeição que eu pudesse e procurar que estas poucas que aqui estão fizessem o mesmo. Punha a minha confiança na grande bondade de Deus que nunca falta em ajudar a quem por Ele se determina a deixar tudo; e que, sendo elas tais quais eu as imaginava em meus desejos, entre as suas virtudes não teriam força as minhas faltas, e poderia assim contentar nalguma coisa o Senhor, e que todas, ocupadas em oração pelos defensores da Igreja e pregadores e letrados que a defendem, ajudássemos, no que pudéssemos, a este Senhor meu, que tão atribulado O trazem aqueles a quem fez tanto bem. Dir-se-ia que estes traidores O querem agora de novo pregar na cruz, e que não tivesse onde reclinar a cabeça... Ó irmãs minhas em Cristo! – continua a Madre Teresa – ajudai-me a suplicar isto ao Senhor, que para isto vos juntou Ele aqui. Esta é a vossa vocação; estes hão-de ser os vossos negócios; estes hão-de ser os vossos desejos; aqui as vossas lágrimas; estas as vossas petições.
Conhecido o espírito e finalidade do convento de S. José, convém saber qual seja o novo teor de vida implantado pela Madre Teresa nos seus Carmelos. O ilustre P. Crisógono de Jesus, O. C. D., o mais moderno dos biógrafos da Santa, descreve assim a vida das Descalças: Ás 5 horas precisas, ouve-se uma campainha que enche com os seus sons os corredores silenciosos do Carmelo. É um convite para a oração. Abrem-se suavemente as portas das celas e começam a sair as monjas, que desaparecem como sombras no claustro alumiado por uma luz mortiça. Entram no coro e vão ajoelhar ao pé da grande grade de ferro que deita para a capela. Feita a invocação ao Divino Espírito Santo, uma das freiras faz a leitura dum breve ponto de meditação e, seguidamente, as religiosas conservam-se em silêncio durante uma hora.
A Comunidade está em oração... Pensam em Deus, nos mistérios de Cristo, Senhor Nosso, nas misérias da vida humana... E oram; oram as Carmelitas pela Santa Igreja, pelos sacerdotes, pelos luteranos que avançam na Alemanha, França e Flandres, ameaçando penetrar também na Espanha.
A Madre Teresa lembra-lhes com insistência que há-de ser este o objecto e finalidade das suas preces. Foi para isto – diz-lhes – que Deus nos colocou no Carmelo. Finda a oração, reza-se parte do Breviário.
As vozes melífluas das Descalças reboam, como vozes de anjos, pelos âmbitos da pequena igreja conventual e deixam-se ouvir também, às vezes, como eco do Céu, pelas ruas solitárias e silenciosas. Seguem-se depois a Santa Missa, a Sagrada Comunhão, arrumação de celas, trabalhos manuais nas diferentes oficinas do mosteiro.
Momentos há, durante o dia, em que a faina das freiras transforma o Carmelo numa colmeia humana; trabalham as Carmelitas como laboriosas abelhas, mas em silêncio... Mãos à obra, coração em Deus.
No refeitório, sobre o lugar que ocupa a Madre, ergue-se na parede uma grande cruz de pau e, sobre a mesa, uma caveira humana... Mesitas toscas, sem nenhum polimento, jarras e tijelas de barro, talheres de madeira: eis todo o apetrecho da sala de jantar. E aqui se juntam as filhas espirituais de Santa Teresa para comerem algumas ervas e hortaliças que apanham na horta, preparadas com quatro gotas de azeite.
Nos dias festivos a Regra permite melhorar a refeição: um ovo para cada religiosa. Por vezes é a própria Reformadora que os prepara na frigideira. Algumas vezes já foi surpreendida, em êxtase, com a frigideira na mão, toda cheia de caridade.
– “Não sabíeis que também entre as panelas da cozinha anda o Senhor?” – diz sorridente ao sair do êxtase.
E lá vão vivendo as Descalças de S. José na pobreza, na abstinência, no jejum, que se prolonga por seis meses, desde 14 de Setembro até à Páscoa. Depois da frugal refeição, dirigem-se as freiras, rezando salmos e preces, para o jardim, quando o tempo o permite, ou para uma sala de recreio, na estação do frio e das chuvas. Começa então a hora de recreio para a Comunidade. A Santa Reformadora liga a este ponto da Regra tanta importância como aos mais santos exercícios da vida conventual. É que não pode, de forma alguma, manter-se sempre tenso o arco sem partir e o espírito precisa de espairecer, de expandir-se, se quer conservar-se dentro dum plano de vida austera. E como se tornam agradáveis às religiosas estes momentos de lazer no Carmelo de S. José! Fala-se, canta-se, trabalha-se e todas riem e folgam.
As monjas, sentadas no chão, fiam ou fazem trabalhos de bordado, preparam escapulários, compõem e passam a ferro as toalhas do altar, ou pintam alguma cortininha para o Sacrário. A Madre Teresa, no meio delas, conversa afavelmente e gosta de brincar, animando o recreio com chalaças de bom gosto, enquanto as mãos, pequenas e lindas, como de fada, fiam, costuram ou bordam.
Aos domingos e dias santos não se trabalha durante o recreio; as Descalças cantam versos e sentidas estrofes compostas pela Madre Teresa. Então, na quadra do Natal, fazem as Descalças Carmelitas autêntica algazarra, dançando em volta do Presépio armado na sala de recreio. Esta toca castanholas, aquela tamboril, aqueloutra algum instrumento de música diferente dos anteriores, e não faltam algumas, das mais espertas e desembaraçadas, que alegram a Comunidade representando o papel de cantador e cantadora de Belém, com seus versos e ditos jocosos, mas sempre cheios de sentido espiritual.
Há, nas horas de recreio, algumas cenas tipicamente alegres, iniciadas e animadas pela Santa Reformadora.
Um dia, as freirinhas de S. José sentem-se incomodadas por uns bichinhos importunos, que aparecem entre as costuras das túnicas de lã que usam as Descalças. A Madre Teresa entende que se deve pedir a Deus que livre as suas filhas duma peste destas e assim promove no Carmelo uma procissão de rogativa ao Santo Crucifixo que se venera no coro. As freiras incorporam-se no cortejo, não a rezar as ladainhas dos Santos, mas cantando uns versos que a Reformadora compôs para esta ocasião. Organiza-se a tal procissão de penitência, ao cair da tarde dum lindo dia de sol, quando a luz crepuscular já não é capaz de alumiar os corredores estreitos de tecto baixo e soalho de tijolo do mosteiro. Dirigem-se as Descalças para o coro, em duas fileiras, sob a presidência da Santa Madre, que vai na retaguarda do cortejo, impetrando ardentemente ao Senhor que lhes conceda a graça. As monjas cantam, revezando-se com a Madre, diversas estrofes, das quais copiámos uma apenas, na língua em que foi composta:
Todas: Pues nos dais vestido nuevo,
Rey celestial,
librad de la mala gente
este sayal.
Todas: Hijas, pues tomais la cruz,
tened valor,
y a Jesus, que es nuestra luz
pedid favor;
El os será defensor
en trance tal.
Madre: Librad de la mala gente
este sayal.
E a verdade é que se realizou o milagre. As Descalças de S. José nunca mais se sentiram mortificadas por hóspedes tão importunos, e desde aquele dia, é denominado aquele crucifixo do coro o Santo Crucifixo dos piolhos.
Com que fervor voltam as Carmelitas aos seus costumados exercícios de piedade e penitência depois destes momentos de espairecimento espiritual! A santa alegria, característica das filhas de Santa Teresa, perdura-lhes na alma através de todas as práticas da vida monástica. E, assim, a Santa Reformadora consegue imprimir à sua espiritualidade esse carácter jovial tão típico de tudo o que é teresiano, afugentando das suas casas essa santidade melancólica, acanhada, sombria e encapotada, que a Santa Madre aborrece como uma terrível enfermidade espiritual. Por isso, no Carmelo reformado, tudo vai envolto num ar de simplicidade e alegria: as penitências, o serviço do coro, os trabalhos manuais...
São 15 horas; rezadas as Vésperas pela comunidade, reina silêncio absoluto no convento de S. José. Nem ruído do abrir e fechar de portas, nem passos de monjas, nem, ao menos, o doce eco da recitação de salmos no coro. É que cada carmelita está agora recolhida na cela, entregue ao seu labor.
Sentada modestamente no chão, sobre o duro leito, ou ainda num tapete de cortiça, para se preservar da humidade, trabalha com casta ilusão de esposa, postos os olhos no Divino Esposo. Enquanto as mãos fiam, bordam ou fazem as alparcatas de cânhamo para uso das irmãs, o seu pensamento, como mariposa, vai adejando de flor em flor, ou passa progressivamente por todas as moradas do místico Castelo Interior à procura do Bem-amado...
O dia vai já declinando e o relógio do Carmelo marca 17 horas. As Carmelitas vão rezar Completas, seguindo-se uma pequena refeição ou ceia em volta da cruz de pau e da caveira humana; alguns legumes ou um pouco de verdura, pão e um pouco de água na tigela de barro.
Das 20 às 21 horas faz a Comunidade a sua meditação perante o Santíssimo Sacramento, terminando com a recitação lenta e fervorosa de Matinas. Depois, exame de consciência, disciplina e últimas preces aos Santos da Ordem.
Finalmente, recolhem as Descalças às celas, esperando, enquanto fazem as suas devoções particulares, pelo sinal de deitar que não deixa de ser impressionante. Às 23 horas ouvem-se nove toques compassados, que uma das freiras produz, numa espécie de matraca, ajoelhada no meio do dormitório das religiosas. Nisto saem todas as irmãs à porta da sua cela, onde caem de joelhos. Erguendo então a sua voz diz a freira da matraca uma máxima ou sentença espiritual, profunda, sobre a morte, a eternidade, a excelência duma virtude, etc., a exemplo da que segue:
Num sepulcro profundo
Morrem as glórias do mundo.
E enquanto o sentido deste aviso de Deus penetra fundo na inteligência e no coração das religiosas, a Madre Teresa vai passando junto a cada uma das freiras lançando-lhes a bênção. Agora, com a bênção da Superiora, já podem deitar-se as Descalças sobre o duro leito de tábuas. Volvidos mais 15 ou 20 minutos, tudo dorme no mosteiro de S. José, até que, ao dealbar, soe de novo a campainha chamando à oração.
[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]