VII
TERESA E SEU PAI
Alonso de Cepeda e D. Teresa de Ahumada, pai e filha – tinha esta o apelido da mãe por ser de mais fidalguia, de mais alta linhagem que o do pai, consoante o costume da época, podem bem ser apresentados como modelos de mútua dedicação.
À semelhança de David e Jónatas, a alma deste pai extremoso parecia como que conglutinada com a da filha e, por sua vez, a desta com a do pai. Por aqui nos é permitido avaliar o sacrifício que fez Teresa ao abandonar o lar para seguir a vida religiosa e, bem assim, a violência que teve de fazer D. Alonso ao seu coração paternal, cheio de ternura, para consentir e deixar sair de casa a filha tão amada. Igualmente se não pode imaginar o que sentiria D. Alonso ao ver a sua Teresa desenganada dos médicos e irremediavelmente perdida. Mas Deus, rico em misericórdia, como diz a Escritura, que tinha os olhos postos em Teresa, acudiu na sua bondade infinita à filha e ao pai. Passada aquela terrível crise cardíaca, que a levaria à beira do sepulcro aberto – só era capaz, naqueles dias, de mexer um dedo da mão direita, nota Santa Teresa –, começou a melhorar, ainda que muito lentamente, e tal como estava, com grande custo, se fez transportar ao convento da Encarnação. A que esperavam morta a todo o momento para lhe fazerem o funeral, quis Deus que a recebessem viva, mas sem forças nenhumas e ainda entrevada, em consequência do ataque geral de paralisia.
Ora bem; com a filha doente no mosteiro, é fácil conjecturar o que faria D. Alonso. Queria vê-la sempre que a Regra o permitisse. A tradição conventual aponta o primeiro dos locutórios à entrada do mosteiro, como o escolhido por Santa Teresa e seu pai para suas entrevistas. Lá está aquele santo velho à espera da filha no locutório. Lá ao longe, do outro lado das grades de ferro, fechadas a ferrolho, ouvem-se no mosteiro ruídos como de quem abre e fecha portas. Passam alguns minutos e, na penumbra da sala, sente-se alguém; correm-se as cortinas e aparece Teresa que, sem poder andar, desce ao locutório para ver seu pai amparada por duas religiosas enfermeiras.
Um sorriso, misto de dor e resignação, aflora-lhe aos lábios. Com grande esforço consegue a doente sentar-se. Retiram então as religiosas e ficam a sós pai e filha. É esta a única consolação que tem neste mundo aquele santo velho: ver e conversar com Teresa, que é o raio de sol que alumia e aquece o inverno da sua velhice. Conta esta a seu pai as lentas melhoras que começa a experimentar, à medida que lhe abrandam as dores. Depois falam da vaidade das coisas do mundo, de Deus, da oração... Porque Teresa, durante a sua longa enfermidade, tem feito notáveis progressos na virtude, e já quer saber da sua alma. Andava tão resignada nos seus sofrimentos e tudo suportava com tanta paciência que, como ela própria confessa na sua autobiografia, de bom grado ficaria sempre assim, doente, entrevada mesmo, se tal fosse a vontade do Senhor. Muito concorrera para este estado de alma a leitura de Job, em dois livros, de S. Gregório, que ainda guardam com toda a veneração as Carmelitas Descalças de S. José de Ávila. Por isso, as conversas com seu pai no locutório da Encarnação sempre recaíam em assuntos espirituais. D. Alonso ouvia-a embevecido, principalmente quando ela lhe falava da oração mental, do modo de a fazer, da sua importância e excelência, e dos frutos que colhe a alma do seu frequente exercício. Então é que D. Alonso via um mundo novo; e esse mundo, cheio de luz, era-lhe descortinado agora, ao pôr do sol da sua vida, pela mágica palavra da sua filha Carmelita.
Onde aprenderia Teresa, pensaria D. Alonso, todas estas coisas tão belas? Quem lhe mostraria a ela esse mundo de sonho e de maravilha da oração, porta do palácio da santidade? Um dia quis Teresa satisfazer a curiosidade de seu pai, e revelou-lhe que tinha bebido as águas cristalinas dessa ciência nas páginas de um livro de ouro que em boa hora lhe emprestara seu tio D. Pedro de Cepeda, quando da sua passagem por Hortigosa. O tal livro, que tanto bem fez à alma de Teresa, outro não é senão o Terceiro Abecedário, escrito em espanhol pelo franciscano Francisco de Osuna, tesouro precioso que guardam igualmente as Descalças de S. José. Quando D. Alonso sai da Encarnação e sobe a ladeira íngreme da cidade, entrando pela porta do Carmo, traz quase sempre um embrulho nas mãos... São livros que lhe vai emprestando sua filha para o iniciar na prática da meditação.
Convém fixar este trecho da vida preciosa de Santa Teresa. D. Alonso aparece-nos agora convertido em discípulo de sua filha. É ele a primeira criatura a quem ela confiou o segredo da oração mental. Seja aqui dito de passagem que Santa Teresa, apesar de ser mulher doente – sofrera toda a vida fortes dores de cabeça –, nunca, durante 21 anos, deixou de fazer todos os dias oração mental, cuja importância, no caminho da perfeição, recomendava com grande eloquência a seu pai, já no fim da sua vida.
Reconheçamos já em Teresa de Ahumada uma qualidade admirável, digna de nota, que a caracteriza. Desde criança revelou-se sempre apóstola; tinha até alma apostólica: em pequenina, levou Rodrigo, seu irmão, a abandonar com ela a casa dos pais para se dirigirem a terra de Mouros, a fim de serem mortos por amor de Cristo; volvidos alguns anos, convenceu outro seu irmão, António, a que desprezasse a vaidade do mundo e fosse para frade; em Becedas soube insinuar-se na alma dum sacerdote, de maneira a que mudasse de vida e se aproximasse mais de Deus; e agora, mesmo alquebrada pela doença, não descansa até conseguir catequizar seu próprio pai na prática da meditação. Era notável e natural, como se vê, em Teresa, o poder de proselitismo que atraía suavemente para a prática da virtude os que tinham a dita de a ouvir.
*
Teresa continuou enferma e entrevada durante quase três anos, edificando a todos com a sua paciência, que era tão grande que, como ela própria confessa na sua humildade, se admirava de si mesma. Mas, de um dia para o outro, Teresa melhora inesperadamente. Já não está entrevada; já faz uso de todos os seus membros; já assiste todos os dias ao coro com as outras religiosas. Dir-se-ia até que parece mais ágil, mais forte do que antes de sentir o mal de coração. As manifestações de alegria de D. Teresa de Ahumada e o metal da sua voz ressoam agora nos corredores, por toda a parte, no mosteiro da Encarnação. A filha de D. Alonso volta a ser a alegria da comunidade.
Que é que aconteceu? Teresa encomendara-se com todo o fervor e confiança ao glorioso Patriarca S. José, a quem todos os anos costumava mandar fazer uma festa, à sua custa, na Encarnação. E S. José fez o milagre. É isto o que nos conta a Santa na primeira parte do capítulo VI, tecendo o elogio do castíssimo Esposo de Maria, página de ouro esta que é o melhor que se tem escrito sobre S. José, com excepção dos dois discursos de Bossuet. Curada miraculosamente Teresa, o seu coração de mulher jovem e prendada – andava por volta dos seus 27 ou 28 anos –, torna de novo a palpitar como outrora e ainda mais fortemente, sob o burel de freira carmelita, no ardor da mocidade. Tem ânsias de amizade, de dedicações, de carinho, porque a vida, debelada a doença, parece abrir-se-lhe agora, como uma rosa... Gasta frequentemente longas horas no locutório, em conversas que facilmente podia evitar, atraindo com os seus olhos negros, profundos, que lhe brilham no rosto como dois luzeiros, e com o encanto do seu sorriso leal e franco, mesmo por entre as grades de ferro, gente de todas as classes sociais da cidade que lhe fora berço. Teresa era alguém no mosteiro da Encarnação pelas suas qualidades de mulher extraordinária e Ávila só agora começa a aperceber-se disso.
Jesus, porém, que queria fosse para Ele, só para Ele, o coração desta mulher cheia de encantos e atractivos, quis sair-lhe ao encontro, ferindo-lhe o próprio coração com golpe certeiro. D. Alonso, pai extremoso de Teresa de Ahumada, adoecera subitamente e para nunca mais se erguer. Celebra-se o Natal de 1544. Alegria e hinos de júbilo nos templos e nas ruas; tristeza e lágrimas na casa de D. Alonso. Jaz este venerável ancião no seu leito, rodeado por Lourenço de Cepeda, pároco de Villanueva del Aceral, seu dedicado irmão, de seu genro, D. Martinho de Gusmão Barrientos, e de seus filhos. Entre eles está, dominando sua emoção, Teresa, chamada com urgência da Encarnação.
O moribundo manifesta vontade de fazer testamento e pronuncia, pela última vez perante o notário, o nome de Teresa, sua filha querida, que nomeia sua testamenteira. Silêncio angustioso e prolongado. No rosto dos circunstantes há lágrimas a rolar pelas faces. Tudo acaba neste mundo – diz com voz apagada D. Alonso, que já está, no limiar da eternidade –; só uma coisa, nos fica: servir a Deus. E fazendo um supremo esforço, insiste em querer recitar o “Credo”: Creio em Deus Pai, Todo-Poderoso, Criador do Céu e da terra, e em Jesus Cristo... Já não pode mais; apaga-se-lhe por completo a voz; olha para o Céu onde está a verdadeira vida, como dirá ao mundo mais tarde sua filha, Santa Teresa. Fecham-se-lhe suavemente os olhos; um frio estranho, acompanhado de suor, espalha-se-lhe pelo corpo todo... Já acabou. Faleceu D. Alonso de Cepeda na paz do Senhor. É o dia 26 de Dezembro de 1544, ao cair da tarde.
Todos ajoelham e rezam em volta do cadáver. As orações de Teresa, dos familiares e criados acompanham seu espírito imortal na sua ascensão ao Céu, onde Deus lhe reserva o eterno galardão.
[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]