VIII
Na ampulheta do tempo vão deslizando continuamente, sem interrupção, pequeninos grãos de areia; são os dias, os meses, os anos da existência humana; a roda do tempo avança implacavelmente, e com ela a preciosa vida da filha do finado D. Alonso. É religiosa professa no mosteiro de Carmelitas Calçadas de Nossa Senhora da Encarnação, em Ávila, terra da sua naturalidade, sendo tida na conta das mais fervorosas. Até à realização de seu sonho dourado, a Reforma da sua Ordem, com a fundação do convento de Carmelitas Descalças de S. José, naquela cidade, Teresa teve de escalar a íngreme encosta da perfeição, passando pela via purgativa, iluminativa e unitiva, ocupando progressivamente, uma a uma, todas as moradas do célebre Castelo Interior.
Nos primeiros anos serviu, ao mesmo tempo, dois senhores: Deus e o mundo, esforçando-se por lhes ser agradável, com grande horror do pecado mortal, é certo, mas com algo de imperfeição, ainda que soubesse ser isso uma insubmissão da parte das almas que professam vida de perfeição. O que lucrava na oração, perdia-o logo no trato com o mundo; o que aqui perdia, ia logo reavê-lo nos momentos que consagrava à meditação. Há 28 anos que me conservo fiel a este exercício, diz Santa Teresa na autobiografia, e durante 18 sustentei esta batalha de tratar ao mesmo tempo com Deus e com o mundo.
Nesta altura da sua vida, muito ajudou a Teresa de Ahumada o seu confessor P. Fr. Vicente Barron, da Ordem de S. Domingos, confessor do seu saudoso pai, aconselhando-a a que fosse à Comunhão amiudadas vezes e que nunca abandonasse a oração.
Durante longos anos, mesmo antes de ser freira, quando ia deitar-se, meditava uns instantes na agonia de Jesus no Horto das Oliveiras, fazendo por ficar adormecida na consideração deste passo da Paixão do Senhor. Dizia bem de toda a gente, aborrecia naturalmente o fingimento e a hipocrisia, detestava a mentira, primava pela lhaneza do trato, conquistando deste modo as vontades de todos quantos com ela tinham a dita de conviver. Atraía-a irresistivelmente a solidão e não era difícil encontrar D. Teresa à procura de um sítio retirado para aproveitar melhor alguns momentos na leitura de livros espirituais, especialmente das Confissões de Santo Agostinho.
Como noutras épocas da sua vida, o Terceiro Abecedário, agora são as Confissões do santo bispo de Hipona que lhe afervoram o espírito, ficando por isso muito devota e afeiçoada a este glorioso santo, cuja conversão queria imitar. Por aqui se pode ver que não era tão ruim e eivada de imperfeições a vida de Santa Teresa, como ela se esforça por pintar na sua autobiografia, modelo de sinceridade e humildade.
Amizades, um pouco de conversa a mais no locutório, alguns apegozitos... que lhe custavam muito a deixar e que impediam a águia do seu anseio de subir, ascender, voar... Eram estes os grandes pecados e ruindades que ela tanto exagera. Deus, porém, que a queria perfeita e sem mancha, procurava atraí-la a Si por todos os meios. E, assim, um dia quis mostrar-lhe o inferno, isto é, o lugar que lhe estaria reservado, se fosse inteiramente infiel à Sua graça. Outro dia apareceu-lhe, num sítio onde não era natural encontrar-se, um bicho, feio como um sapo, imagem viva do pecado mortal, que ainda podia vir sujar-lhe a alma. O que, porém, mais sensivelmente a comoveu foi, sem dúvida, a contemplação duma devota imagem do Ecce Homo, que estava guardada no oratório particular do convento, para realizar uma festa em Sua honra. Conta a Santa que ficara comovida até às lágrimas e debulhada em pranto, ao ver assim o Senhor todo feito uma chaga por causa dela. Sob a influência deste duplo sentimento de compaixão do Senhor e de arrependimento dos seus pecados, caíra de joelhos aos pés daquela imagem, suplicando-Lhe que lhe perdoasse e lhe desse forças para nunca mais tornar a ser-Lhe infiel. Creio bem, continua Teresa28, que tirei algum proveito desta súplica; a partir desse dia, comecei a melhorar notavelmente.
Isto é o que a Doutora Mística chama a sua conversão... E foi-o até para uma vida mais perfeita e divina, porque, no futuro, só tratou de se consagrar inteiramente e sem reservas a Deus, esquivando-se, tanto quanto possível, ao mundo. Andava sempre ocupada nesta árdua tarefa de despegar-se de coisas e criaturas, mesmo com o coração a sangrar.
Passaram alguns anos, muitos mesmo, até que em 1558 consultou sobre o que de extraordinário se passava na intimidade da sua alma com o P. João de Prádanos, da Companhia de Jesus que, com muito jeito e brandura a elevou a um grau mais subido de perfeição, fazendo-lhe ver que para de todo contentar o Senhor, era preciso não deixar nada por fazer. Todavia, Teresa, que não tinha ainda quebrado todos os fios que a ligavam ao mundo, teimava em não abandonar certas amizades, visto com elas não ofender Nosso Senhor, conforme lhe asseguravam os confessores. Entretanto, para se conhecer, nesta emergência, qual a vontade de Deus, disse-lhe aquele Padre, a quem se confessava, que se encomendasse durante alguns dias ao Senhor, rezando com toda a devoção aquele hino da liturgia do Pentecostes: Veni, Creator, Spiritus. Ora, um dia em que ela o fazia, teve o primeiro arroubamento, provavelmente no mesmo ano de 1558. Foi então que ouviu claramente estas palavras: já não quero que tenhas mais conversas com homens, mas só com anjos.
Inicia-se aqui um novo período ou fase na vida de Santa Teresa: desde a primeira fala de Deus até ver realizado o seu sonho, com a inauguração da vida carmelita descalça, no mosteiro de S. José (1558-1562).
Uma vista de olhos sobre os capítulos mais importantes da sua autobiografia leva-nos a verificar que ficou assinalado este período da sua vida pela contínua comunicação de Cristo, Senhor Nosso, com esta alma de eleição, estruturalmente humilde e grande, escolhida para reformar o Carmelo, devolvendo-lhe o antigo esplendor. Nestes quatro anos, dir-se-ia que Jesus Cristo preparou a alma desta Sua dilecta esposa para o grande empreendimento da Reforma da Ordem Carmelita, por meio de falas, visões, êxtases, revelações e outras graças sobrenaturais, que ela explica tecnicamente, como Doutora Mística, com os termos mais apropriados, no livro admirável da sua autobiografia.
Jesus, Senhor Nosso, aparecia-lhe na Santíssima Humanidade, falava-lhe, tomava-lhe a cruz do terço com que a Santa rezava, devolvendo-lha, um dia, cravejada com quatro brilhantíssimos diamantes, em recompensa do acto heróico de obediência aos seus confessores que, ora lhe proibiam a comunhão para a experimentarem, ora lhe mandavam que espantasse a visão celeste com água benta ou por meio de uma cruz, o que ela fazia, ainda que soubesse com toda a certeza ser Nosso Senhor Jesus Cristo Quem lhe aparecia. Era ordinariamente na Santa Missa, depois da Sagrada Comunhão, ou durante a meditação, que Cristo, Senhor Nosso, Se mostrava a Teresa, escolhendo para isso as festas dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, Nossa Senhora da Assunção, Corpus Christi, dias da Semana Santa, Santíssima Trindade, etc.
Convém, porém, fixar que estas visões não eram corporais, senão imaginárias ou intelectuais, isto é, Santa Teresa não via Jesus Cristo com os sentidos corporais, com os olhos do corpo, mas com os olhos da alma. Cristo apresentava-Se a Sua dilecta esposa, ora na fantasia, ora no entendimento, como ela própria conta.
Os efeitos maravilhosos que estas graças extraordinárias produziam no espírito de Teresa não podiam ser melhores. Ficava toda fora de si e intimamente unida a Nosso Senhor, alheia ao que se passava à sua volta, enlevada, ardendo em divina caridade, em ânsia de sofrimentos, a ponto de dizer: ou padecer ou morrer, com a mais plena segurança de que era Deus que lhe falava, cheia de coragem para lutar e vencer, forte, enfim, com a fortaleza de Deus, especialmente quando da transverberação do seu coração pelo serafim, graça esta que ela própria conta, com toda a humildade, em obediência ao seu director espiritual.
Nunca alguém viu um anjo atravessar-lhe o coração com um dardo de ouro, em brasa; isto Deus reservou-o para Sua fiel esposa Santa Teresa. Hoje parece já fora de dúvida que Deus a regalou com essa graça sobrenatural da transverberação por mais de uma vez, sendo a primeira, provavelmente, por volta do ano de 1562, no mosteiro da Encarnação, e outra, como atesta D. Maria Pinel, cronista deste convento, de 1571 a 1574, quando prioresa do dito mosteiro. Não é fora de propósito notar aqui que um dos sofrimentos morais mais terríveis que Santa. Teresa teve de suportar neste mundo foi manifestar aos confessores tudo o que de sobrenatural se passava no interior da sua alma. Confessa ela ingenuamente que preferia ser enterrada com vida do que contar todas estas coisas extraordinárias a seu confessor; e todavia, para não se deixar iludir pelo demónio, lá ia D. Teresa de Ahumada com toda a humildade abrir-se aos representantes de Deus, de quem queria fossem conhecidos até os mínimos movimentos.
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Preparada assim sua alma de eleição e o seu acrisolado coração com este cortejo de virtudes e dons celestes, resolveu D. Teresa de Ahumada, depois de muito encomendá-lo a N. Senhor e de repetidas consultas a teólogos e letrados, meter ombros ao empreendimento de dar realização prática ao seu sonho dourado: a Reforma da sua Ordem, embora soubesse que havia de ser ela manancial de desgostos e dissabores. E, como não lançar-se a levar a cabo esta magna empresa, para maior glória de Deus, se a Santa Madre Teresa de Jesus, como atesta o bispo de Ávila, D. Álvaro de Mendoza, quando falava em Nosso Senhor, o fazia com um amor e um fervor tão grandes que os comunicava a quem a ouvia, tendo-se por certo que o próprio Espírito Santo iluminava aquela alma? A ideia da fundação dum mosteiro de Carmelitas Descalças nasceu no espírito da Santa Madre por ocasião duma conversa que tiveram, um dia, na cela de D. Teresa de Ahumada, algumas freiras daquele mosteiro da Encarnação, suas parentes, como se dirá no capítulo seguinte.
[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]