sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Santa Teresa de Jesus - Cap.9

IX



NO CONVENTO DE S. JOSÉ


A ideia de chegar um dia a observar, em todo o seu rigor, a Regra primitiva da Ordem Carmelita – na Encarnação guardava-se a Regra com a mitigação introduzida por Eugénio IV, em 1432 –, fulgia como uma luz desde longa data, no espírito de D. Teresa de Ahumada, porque o seu carácter decisivo e enérgico, mais que de mulher, mal se adaptava a um plano de perfeição comodista; a forma prática, porém, de o realizar, essa foi o resultado duma conversa providencial havida entre algumas religiosas e D. Teresa.


Um dia, D. Maria Baptista, sua sobrinha, abrindo-se numa roda de amigas reunidas no quarto de Santa Teresa no mosteiro da Encarnação, começou a discorrer sobre coisas espirituais, recaindo a conversa nas vidas dos Santos do deserto.


– Isso vai além das nossas forças – disseram algumas freiras. – Mas se se fundasse um conventinho com poucas religiosas, de certo que lá iríamos algumas de nós fazer penitência.


– Não seria melhor – replicou D. Teresa de Ahumada –, mais agradável a Deus, tratar cada uma de se reformar e observar a Regra primitiva da Ordem a que Deus nos chamou, com as suas longas horas de oração, com as suas austeridades, com a sua clausura?


– Oh! Madre – acudiu a sobrinha da Santa –, mande construir um convento assim e desde já ponho para essa obra ao vosso dispor os meus haveres.


Nisto ia a conversa quando chegou D. Guiomar de Ulloa, senhora fidalga de intensa vida interior, que se consagrara toda a Deus e às coisas do seu serviço, desde que enviuvara. Contara D. Teresa a esta sua amiga o que andavam planeando suas parentes e D. Guiomar, toda entusiasmada, disse-lhe:


– Desde já pode vossa mercê contar comigo para uma obra destas.


A partir deste dia, D. Teresa começou a pensar a sério na fundação do tal convento reformado. Antes, porém, de falar no assunto ao seu confessor, quis consultar um grande teólogo da Ordem de S. Domingos, o P. Frei Pedro Ibañez, que morava no convento de S. Tomás daquela cidade, porque, dizia a Madre Teresa, não queria ir contra a Sagrada Escritura em coisa alguma. E, assim, um dia, resolveu-se a bater à porta do mosteiro dominicano, em companhia de D. Guiomar, à procura de Frei Pedro. As fundadoras, verdadeiras amigas de Nosso Senhor, não queriam enganar-se em assunto tão grave e buscavam luz, queriam saber com toda a certeza se seria do agrado de Deus a fundação dum mosteiro de Carmelitas Descalças. É isto o que as leva ao Colégio de S. Tomás, sito extramuros, no vale Amblés, entre árvores, plátanos e fontes de água cristalina.


Por sorte, o religioso procurado está na residência e logo lhes aparece, prontificando-se a atendê-las. Enxuto de carnes, de olhar penetrante, doutrina segura e palavras precisas, Frei Pedro recebe com extremos de gentileza a visita da Madre Teresa e de D. Guiomar, tornando-se ciente das suas ideias e projectos tendentes à maior glória de Deus. Esta senhora assegura-lhe que nada faltará às religiosas, porque suas rendas passarão a ser património do novo convento, enquanto D. Teresa, por sua vez, salienta o espírito e finalidade da Reforma Carmelita. Convém notar aqui que, volvidos alguns anos, alcançou a Santa Fundadora, animada por S. Pedro de Alcântara, um Breve de Roma autorizando o dito convento de Descalças a viver de esmolas, sem quaisquer rendas. Frei Pedro ouve com atenção a longa e pormenorizada exposição de motivos feita pelas visitantes e responde com desembaraço e segurança às suas perguntas. Não condena logo, à primeira vista, o projecto da fundação, como já tinham feito outros eclesiásticos. As intenções não podem ser melhores, o ideal magnífico, os planos orientados todos para o aumento da glória de Deus, mas, homem prudente, não quer dar já uma resposta definitiva e pede às fundadoras oito dias para se pronunciar sobre assunto de tanta importância.


Passam esses dias, que lhes parecem séculos, e lá vão ter com Frei Pedro D. Teresa e D. Guiomar. Da resposta deste ilustre teólogo dependerá a atitude a tomar pelas fundadoras. Durante estes dias oraram muito pondo a almejada fundação nas mãos de Deus, cuja vontade desejam conhecer e realizar. E este insigne homem de ciência, exímio na Teologia e enfronhado no conhecimento das Sagradas Escrituras, não só aprova de bom grado e em absoluto os planos e projectos da Reforma Carmelita, como também se torna ainda seu destemido defensor, dizendo às senhoras:


Se alguém for contrário a esta iniciativa, venham cá; eu próprio o hei-de convencer.


Quando a Madre Teresa saiu do Colégio de S. Tomás ia radiante de alegria; parecia que lhe tinham tirado um grande pesadelo. As palavras laudatórias do frade dominicano serão para as fundadoras um raio de luz e uma esperança fagueira no meio das nuvens negras da tremenda e terrível tormenta que vai desabar sobre o projecto do novo convento das Descalças. Agora já não pensa a Madre Teresa senão em obter as devidas licenças. Começa pelo seu confessor, um jesuíta, tão santo como meticuloso, que agora concorda para discordar depois. Fala com o seu Provincial, P. Gregório Fernandez, que primeiro louva, abençoa e admite a fundação, e à última hora recua, recusando-se a admiti-la. Dirige-se também ao sr. bispo de Ávila, D. Álvaro de Mendoza, que lhe era muito dedicado, desde que um dia, a instâncias de S. Pedro de Alcântara, foi visitá-la na Encarnação, mas o Prelado, todo entusiasmado ao princípio, mostra-se hesitante nas vésperas da inauguração do convento, não sabendo para onde se virar.


O Geral da Ordem, Frei Nicolau Audet, esse, sim, esteve sempre do lado da Madre Teresa, pois ninguém mais do que ele desejava a Reforma dos frades e das freiras da Ordem. E não admira que assim fosse, pois estava-se, então, nos tempos da verdadeira Reforma...


Tratando a Madre Teresa com este, com aquele e com muitos outros para arranjar casa que servisse de mosteiro, mal se podia manter em segredo o projecto da nova fundação; assim, pois, logo se espalhou a notícia pela cidade. Uma monja da Encarnação, que tem visões, êxtases e arroubamentos, pretende fundar um convento de Descalças... Diziam os boatos que corriam por Ávila. A notícia levantou grande celeuma em toda a parte. A cidade em peso, com raras excepções, insurgiu-se contra D. Teresa de Ahumada. Foi censurada em todas as rodas, tornando-se o projectado mosteiro das Descalças caso do dia durante algumas semanas.


Nas sacristias, nos conventos, até nos púlpitos se chegaram a fazer alusões nada favoráveis à Madre Teresa. Uns diziam que não tinha ar de Reformadora aquela menina elegante, toda perfumada, chique, que ostentava formosura nos salões e divertimentos públicos de Ávila; outros que, amiga de novidades, só pretendia tornar-se notável nos meios religiosos de Espanha; os mais benignos e sensatos, que sabiam da sua vida interior intensa, das suas virtudes, da sua altíssima oração durante mais de vinte anos e não ignoravam as graças extraordinárias que recebia de Deus Nosso Senhor, esses, mesmo reconhecendo a boa vontade da Madre Teresa, eram quase todos de parecer que o dito mosteiro das Descalças não era viável nem sequer conveniente.


Um dia foi Madre Teresa e sua irmã D. Joana de Ahumada, casada com D. João de Ovalle, ouvir um sermão em determinada igreja de Ávila. Notando o pregador a presença da Madre Teresa, falou, durante o discurso, contra essa casta de monjas que, com ânsia de liberdade, saem da clausura para fundar novos mosteiros... Só faltava indicá-la com o dedo. D. Joana, que andava, nesses dias, à procura de casa para tal fundação, estava toda excitada, apanhando em cheio as investidas do imprudente orador sagrado contra sua santa irmã, e queria fazer-lhe um sinal para se irem embora. Volvendo, porém, os olhos para Madre Teresa verificou que ela estava toda serena, sorrindo até com um certo ar de alegria; não foi preciso saírem do templo.


As freiras da Encarnação, por sua vez, também não olhavam com bons olhos o projecto da Reforma Carmelita. E com toda a razão, diziam os mais sensatos, porque Madre Teresa tinha naquele mosteiro, ao seu dispor, todos os meios de santificação e lá moravam almas escolhidas, mais santas que a presuntiva Reformadora. Enfim, não é possível descrever a tempestade medonha que o demónio, inimigo figadal da glória de Deus, fez desabar sobre a Madre Teresa para ela desanimar e não levar avante a sua ideia do Carmelo Reformado. Foi este o sinal mais certo para ela de que a fundação do convento de Carmelitas Descalças era obra de Deus, e que se faria, sem dúvida, pois tamanha oposição encontrava até entre os bons.


Por este tempo, talvez nos fins de 1561 ou começos de 1562, andava Santa Teresa por volta dos seus 46 ou 47 anos, teve uma visão que muito a confortou na luta que sustentava contra o inferno, empenhado em impedir a Reforma da Ordem Carmelita.


Um dia, acabando de receber a Sagrada Comunhão – conta Santa Teresa–, mandou-me Sua Divina Majestade que tratasse, com todas as minhas forças, da fundação do tal convento, prometendo-me que se não deixaria de inaugurar, que neste convento seria Ele servido com toda a fidelidade, que se chamaria de S. José, e que este santo estaria a guardar-nos à porta da entrada, e Nossa Senhora, por sua vez, à porta de saída, e que o próprio Cristo andaria connosco, que havia de ser como uma estrela que desse grande resplendor.


Apesar destas palavras de Nosso Senhor, de cuja realização a Madre Teresa nunca duvidou, como ela desejava em tudo submeter a sua maneira de pensar, quis consultar o assunto com S. Francisco de Borja e S. Pedro de Alcântara, e ambos os servos de Deus aprovaram o espírito e os planos da Reforma Carmelita. Foi assim que começou a amainar a tormenta e a ganhar terreno a ideia da fundação do mosteiro de S. José. Santa Teresa por toda a parte procurava conselho e apoio para a sua obra, que era também de Deus. S. Pedro de Alcântara chegou a vir a Ávila e foi ele quem explicou à Madre Teresa a forma de se pedir ao Santo Padre o Breve para tal fim, pois acabara de obter outro de Roma, autorizando-o a dar início à reforma dos frades franciscanos, em que ele andava empenhado por aqueles dias no convento de Pedroso, na província de Ávila. Dir-se-ia que este santo homem não queria morrer sem ver realizada a fundação de S. José, sonho dourado da Madre Teresa, a quem ele chamava santa à boca cheia, uma das três santas que naquele tempo albergava a cidade dos cavalheiros, pois volvidos dois meses sobre a data da inauguração, nem tanto – 24 de Agosto de 1562 – falecia S. Pedro de Alcântara em Arenas, Ávila, a 18 de Outubro de 1562.


Ia tudo bem encaminhado para a inauguração da vida carmelita descalça em S. José – D. João de Ovalle tinha já comprado, com este intuito, uma casita com dinheiros que lhe dera um irmão da Santa Madre, D. Lourenço de Cepeda, recém-vindo da América –, quando houve um grande contratempo que pôs em relevo a obediência de Santa Teresa. O seu confessor, P. Baltazar Álvarez, da Companhia de Jesus – dirigiu este ilustre religioso o espírito da Santa Madre mais de quatro anos, na fase mais acidentada da sua vida, 1558-1562 –, manda a Teresa que não se preocupe mais com a fundação em projecto... Nem mais um passo para a frente. A Santa Madre recolhe imediatamente ao mosteiro da Encarnação onde se deixa estar até que o P. Provincial lhe dá ordem para se dirigir, por obediência, a Toledo, com o fito de consolar na sua dor uma senhora fidalga, benfeitora da Ordem, D. Luísa de la Cerda, que tinha enviuvado e não encontrava lenitivo neste mundo. Quer isto dizer que a fama da santidade da Madre Teresa começa a correr mundo; já não pode manter-se abafada dentro das muralhas de Ávila, mas principia a expandir-se por toda a Espanha, chegando até ao palácio do fidalgo Arias Pardo de Saavedra, na cidade imperial de Toledo. Grande desgosto teve Madre Teresa ao verificar que era tida por santa, mas foi necessário obedecer, partindo de Ávila para Toledo pelo Natal de 1561. Pouco mais de 6 meses demorou Madre Teresa na companhia de D. Luísa de la Cerda, enxugando-lhe as lágrimas com o lenço dos seus conselhos salutares, e conquistando os corações de toda a gente com a sua santidade franca, lhana, leal, cativante, porque era esta a característica de Santa Teresa: fazer amar a virtude, tornando-a amorável.


Longe de Ávila, e atadas as mãos pela obediência, D. Teresa de Ahumada nada podia fazer para apressar a inauguração do seu convento carmelitano. Só faltava pedir o Breve a Roma; mas, como a obra de Teresa era também obra de Deus, que deseja a santificação dos seus servos, foi Ele próprio Quem providenciou auxiliares para o acabamento desta obra.


O P. Frei Pedro Ibañez, destemido defensor da Madre Teresa e a sua grande amiga D. Guiomar de Ulloa, quiseram chamar a si o encargo de requerer a Roma o Breve para a fundação e que Teresa de Ahumada veio encontrar em Ávila, no regresso de Toledo, em princípio de Julho, assinado pelo Papa Pio IV a 7 de Fevereiro de 1562. Tudo estava pronto, quando, à última hora, apareceram alguns entraves e dificuldades na compra do prédio. Deus, sempre previdente, deu uma doença grave ao cunhado da Santa Madre, D. João de Ovalle, o que serviu às mil maravilhas como pretexto para Teresa andar fora do convento da Encarnação, com licença do P. Provincial, a fim de tratar do doente, podendo assim gerir pessoalmente este negócio. Diz um dos mais ilustres biógrafos antigos de Santa Teresa que D. João de Ovalle esteve doente todo o tempo que a Santa Madre precisou andar por fora do mosteiro para dar os últimos retoques ao plano da Reforma Carmelita, admirando-se todos de tão estranha enfermidade. É que Deus estava por Teresa e pela sua obra.


*

24 de Agosto de 1562. Data notável na Ordem Carmelita e para a Igreja Universal. Ao romper do dia, ouve-se em Ávila, pela primeira vez, um sino a repicar festivo e jubiloso, que faz acordar os pacíficos moradores do bairro oriental. Os curiosos vão indagar o que aquilo é e topam com uma casita cercada de muros não muito altos, janelas pequenas, corredor sombrio, como em constante penumbra, tecto baixo de madeira. É o novo convento de Carmelitas Descalças de S. José que, neste dia consagrado ao Apóstolo S. Bartolomeu, se inaugura. Tudo aqui é pobre, estreito e sem conforto, como na lapinha de Belém. Lá anda Madre Teresa, a Reformadora, toda afanosa a ultimar os preparativos para a celebração do Santo Sacrifício da Missa, que vai celebrar o P. Gaspar Daza. Este sacerdote, servo de Deus e muito douto, traz a representação oficial do Bispo da diocese a quem estará sujeito o novo mosteiro. Acabam de chegar as poucas pessoas convidadas: D. Francisco de Salcedo, a quem Santa Teresa chama sempre o cavalheiro santo, D. Gonçalo de Aranda, benfeitor da Ordem, D. João de Ovalle e sua mulher, D. Joana de Ahumada, irmãos da Santa Fundadora, o Capelão da comunidade, P. Julião de Ávila, D. Inês e D. Maria de Tápia, primas da Santa Madre, religiosas da Encarnação, e mais ninguém.


À hora aprazada para a cerimónia, reunem-se todos na capelinha daquela miniatura de mosteiro. Finda a Santa Missa, fica ali reservado o Santíssimo Sacramento, considerando-se assim feita a fundação. Foi para mim como estar na glória, ver expor o Santíssimo Sacramento – diz-nos Santa Teresa, quando historia a fundação do seu convento38.


Seguiu-se logo a admissão na Ordem e tomada de hábito de quatro donzelas pobres oriundas de famílias honradas e virtuosas. Lá estavam elas em volta da Santa Reformadora, do lado do Evangelho, vestidas de branco, de mãos postas, descalças, ajoelhadas no coro separado do resto da capela por uma enorme grade de pau. Pareciam anjos... A própria Madre Teresa quis dar-lhes o hábito, acompanhando a cerimónia com orações litúrgicas e bênçãos e, voltado do altar para o coro, o Rev. Dr. Daza.


Vamos registar aqui os nomes das quatro primeiras Carmelitas Descalças que apareceram no mundo como colunas do Carmelo Teresiano e semente preciosa que fez florir tantos Carmelos espalhados pelo mundo. Ei-los: Antónia do Espírito Santo, dirigida por S. Pedro de Alcântara; Maria da Cruz; Úrsula dos Santos e Maria de S. José. Esta cerimónia tão singela, sem o menor aparato nem ruído mas cheia de significado, realizada quase na intimidade para não espantar o vespeiro da terrível oposição da cidade representa, na Santa Igreja, a pedra fundamental do edifício da Reforma da veneranda Ordem Carmelita, cuja origem, envolta em nuvens de lenda e tradições, remonta a tempos antiquíssimos.


[Jaime Gil Diez, Santa Teresa, Edições Carmelo]