quarta-feira, 7 de maio de 2008

CRÓNICA DUMA PEREGRINAÇÃO ANUNCIADA (II)

Dia 1 - 1 de Maio
Que palavras são essas que trocais entre vós?

À hora em ponto uns suaves tun-tuns nas portas dos quartos recordavam-nos que estávamos na hora certa para erguer o esqueleto. Os mais ansiosos levantaram-se logo, os mais acomodados deram ainda volta e meia no saco-cama. Mas não havia nada a fazer. Começara a marcha! Já nada a podia deter! Observado o tempo com olho de áugure logo deu para entender que nem o tempo nos deteria.
Arrumamos os quartos, enfiamos os sacos, limpamos as migalhas do pequeno-almoço. E reunimo-nos de novo na Sala dos Claustros para a Oração de bênção do Peregrino. Logo depois com a voz embargada e com os pés decididos fomos para a estrada.
Alguns amigos despediram-se de nós.
Saímos mais cedo uma hora que no ano passado. E ainda assim encontrámos alguns conhecidos que, despertos, nos saudaram:
- Aonde vão?
- Vamos para Fátima!
– Então, que Deus vos acompanhe.
E seguimos. E parámos. Tínhamos criado para esta peregrinação uma actividade nova. Chamava-se Pistas. As Pistas são um despertar para algum pormenor do caminho ou do dia. São uma tentativa de sublinhar algum aspecto a ter em conta. São uma catequese, uma formação ou oração. Enfim, um plus daquele dia. As Pistas do primeiro dia tinham a ver com o tema desse dia: «Que palavras são essas que trocais entre vós?». Ou seja, urgia trocar palavras entre nós. Sobretudo com os menos conhecidos de nós. Dizer e compartilhar as palavras e sentimentos que nos aqueciam (ou arrefeciam) o coração. Palavras que Ele, caminhante connosco, pudesse escutar, acalentar, reforçar. Ouve, assim, ao longo de toda a manhã e de quase toda a tarde um longo momento de parlapiê cheio de alegria e de diálogo.
Em Vagos voltamos a parar no mesmo jardim da mesma capela fechada. Aterrámos nos bancos do jardim, bebemos água e uma maçã ou doce, ou ambos, e levantámos o esqueleto. Levantámos, quer dizer, queríamos levantar. Que terrível é levantar o esqueleto quando ele se espalmarra daquela maneira. E o mais difícil é pensar ou aceitar que os poucos quilómetros andados são pouco mais que o aquecimento, pouco mais que o início da peregrinação! E cai-nos no coração um pensamento em forma de pingo de chumbo negro: será que vai ser sempre assim? Será que terei de sofrer tudo isto outra vez?
E por cima de nós paira um ameaço negro de chuva portentosa.
Continuamos o caminho. Não há tempo a perder. Não há tempo para ter medo da chuva. Continuamos no parlapiê, agora com outros amigos porque o reajuntamento permitiu, entretanto, trocar de parceiros de caminho.
Ao fim da manhã chegamos a Santo André de Vagos, ao mesmo restaurante que nos recebera na primeira peregrinação. Já ali somos conhecidos. E, parece até, esperados. A senhora, bastante jovem, atende-nos com respeito e prontidão. Quando por fim nos despedimos é ela quem nos dá a gorjeta para deixarmos no Santuário em velas a arder. Ora aqui vai mais uma intenção na nossa peregrinação: um coração de mãe e outro de filha bebé por quem rezar!
Começámos refeitos e ligeiros a segunda etapa do dia. Há já algumas queixas, mas muito bom humor. Percorremos algum tempo a palrar até que chegam as rectas de Calvão. Ali formamos para rezar o Terço. É o melhor momento do dia. Caminha-se a rezar, em conjunto, calmamente, com Jesus e Maria. (A meio da recitação do Terço dá-se uma aparição: A Nininha, que é filha da Nina, aparece-lhe e o coração da mãe derrete-se. O corpo, ou melhor, tudo, o corpo, a alma e o espírito maternos dão um salto, saltam ave-marias e padre nossos e as linhas da estrada, e os braços estreitam a filha no peito. A mãe chora. A filha chora. Mas nenhuma sabe porque chora. Porque afinal, Fátima é já ali!)
Quando termina o Terço algum dos caloiros quer rezar mais, por que é bom caminhar assim. Mas não dá. Não haja dúvida que é bom, mas a prudência recomenda que se acelere o passo. E aceleramos o passo. Pelo menos os que podem aceleram o passo. Havemos de chegar todos ao fim da etapa do primeiro dia. Um dos peregrinos chega de carro à meta com palavras de choro, angústia e desilusão. «O sistema bloqueou!», diz. Quer desistir, porque não consegue dar um passo. Acaba aceitando passar pelo hospital, em Aveiro, onde o aguarda uma equipa de retaguarda. Demora-se pouco tempo no hospital. Os médicos vêm o sistema e encontram tudo bem. Devolvem-no à procedência recomendando prudência mas não impedindo a caminhada a pé.
Entretanto, fomos muito bem recebidos na Casa da Sagrada Família da Nazaré. Há uma festa à porta, porque na região o primeiro de Maio é celebrado no campo: o povo quer o cheiro a erva fresca e a flores, o cantar dos passarinhos e do vento.
Tomámos banho, refrescámo-nos e a Delfina fura-nos as bolhas. Há uma caloira que promete um filme por cada bolha furada. A primeira deu um filme cómico único. Quem viu viu, quem não viu visse! Infelizmente não furará mais bolhas. Preferirá caminhar três dias em cima das bolhas que furá-las. É assim mesmo heroína! O jantar foi regalado e o cúmulo foram as natas do céu que a D. Orquídea nos veio trazer. Ninguém resistiu. Todos comeram e enquanto comeram ninguém se queixou de dores, nem nos dentes nem nos pés! O remédio está encontrado: um doce por cada dor!
Um regalo foi também o recreio com canções de todos os tops. A Nina fez de disc-jokey e começou todos os hits. Não escapou um! Ainda deu para dançar a dança do pé-coxinho, que é mais sugerida pelas dores das bolhas furadas e pelos músculos doridos que pelo jeito para a dança.
Terminamos o dia com a oração da noite, mas não sem antes nos dizermos compartilhando longamente as palavras que trocámos entre nós, que nos animaram, que não nos deixaram desistir. E surgiram ali tantas palavras belas, tantas palavras doces e animosas, palavras que são mais Deus que dos homens!
Por fim era já tarde e os corpos reclamavam descanso. Tínhamos cinco horas de descanso pela frente. Havia que aproveitar a presença dos Anjos que nos convidavam a dormir.
E fomos dormir.