A palavra forte ao longo do dia será «Inunda», logo depois de «Espírito Santo».
Quando às 10:00h a delegação de Viana do Castelo, a última, entrou na Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Braga, já ali se encontravam todos os carminheiros. Logo depois iniciaram-se as operações comandadas pelo Tiago Gonçalves.
Havia gente nova, gente repetente e peregrifatis, quer dizer jovens que fizeram a Peregrinação a Pé a Fátima. Outros muitos não puderam vir, quase todos por boas razões; a maioria com imensa pena. Mas a vida não é só carminhar. O céu chovia, chovia que Deus a dava. Também por esta razão o verbo inundar será hoje o mais ouvido. A oração inicial foi decorrendo em paz e serenidade, e com o pensamento na chuva. Lemos o texto do Profeta Ezequiel que fala dos ossos ressequidos que se erguem e se põem a caminho pela força do Espírito de Deus. Logo depois o Superior da Comunidade, P. Agostinho Castro, em breves palavras, saudou-nos animando-nos a estar em paz na casa da Mãe, caminhar em paz e a regressar em paz. Recordou também que a «caminhada mais importante é ao centro do coração onde está a Verdade». Verdade que ele ainda não sabia que não caminharíamos como fora programado e como tanto era desejado.
A igreja estava escura. A Igreja do Carmo de Braga é escura e convidativa ao recolhimento. Mas aquele céu cor de chumbo e de chuva escurecia ainda mais a igreja. Não foi pois necessário sair fora de portas para perceber que não se poderia sair. Não carminharíamos como tanto gostamos!
Passámos por isso à execução do Plano B: caminhar dentro, com mais atenção ao interior. Caminhar dentro, mas sobretudo carminhar para dentro para «o centro do coração onde está a Verdade» (Palavras do P. Agostinho Castro). Assim, num primeiro momento dividimos o grupo em cinco pequenos cenáculos que foram convidados a ouvir o testemunho dos peregrifatis e a rezar uma de duas orações: ou a que pede os sete dons do Espírito Santo ou a que pede os Seus doze frutos. (Todos escolheram a que pedia os sete dons. Coincidência? Inteligência? Inspiração?) E a manhã ia ficar por aqui quando, empurrados mais pelo desejo de carminhar que pela eleição da escolha mais prudente, nos fizemos ao caminho. O Tiago Gonçalves, alto, voz forte e encorpada, declarou: «Vós sois testemunhas do Espírito Santo, carminhai em paz!»
E saímos do templo. À frente ia o cajado que ninguém «está autorizado a ultrapassar» e uma pequena candeia acesa, que nos recorda que temos a Luz por guia. Caminhamos descontraidamente durante 45 minutos, da Igreja do Carmo à Capela de Nossa Senhora de Guadalupe, por um caminho mais longo que o normal, que nos fez passar pelo centro da cidade. Chegamos. Que linda é a Capela de Guadalupe! A receber-nos estava o Dr. Ricardo Carvalho, membro da Irmandade de Guadalupe, que nos sintonizou com a história e as vicissitudes do templo e nos despertou para a singular beleza daquela capela tão pequena, tão acolhedora, tão sóbria e por tudo isso (e muito mais) tão bela!
Ali rezamos como manda o preceito e escutamos a voz do Papa, como também mandava o protocolo das carminhadas deste ano pastoral. Foi bonito estar em sintonia com aquela pequena comunidade que ali se reúne para celebrar a fé, e sobretudo com a agilidade daquelas gentes que converteram aquele celeiro bastardo em Casa do Pão. Digo bastardo, porque a primeira função daquele edifício foi a de lugar sagrado (capela), depois foi mal convertida em celeiro e agora novamente em capela, ou seja em Casa de Pão bom, a Eucaristia.
Já não foi fácil sair dali. Primeiro, porque a capela é bela. Depois, porque – e via-se dali! – a chuva que caía sobre o Mosteiro de Tibães em breve cairia sobre Guadalupe. Mas ainda assim fomos para a estrada. Não descêramos ainda à Rua de S. Margarida e já chovia. Acoitamo-nos por baixo do Diário do Minho, mas as ânsias eram tantas que, ala!, vamos carminhar! E fomos. Mas ainda não tínhamos passado o Paço Episcopal e a chuva mais que redrobara. E não havia ali lugar para nos recolhermos! Iam abertos uns poucos guarda-chuvas que alguns, mais prudentes como as virgens do Evangelho, haviam trazido, mas eram insuficientes. Havia muitos em falta, para que bem se completasse naquela hora a parábola evangélica sobre a imprevidência. Quando nos abrigámos numa bela arcada duma grande livraria ninguém estava grandemente molhado, não tinha sucedido nenhuma azar excepcional. Estávamos, por assim dizer, ligeiramente respingados. Mas também era certo que ao benzer a chama que nos acompanhava, o Frei João rezara:
«Que a bênção da chuva fecunde a terra
e caia gentil sobre as nossas cabeças refrescando as nossas almas
com a doçura de pequenas flores recentemente floridas.»
Tudo estava certo, tudo estava no seu lugar. Até a chuva que nos refrescara os corpos e nos recordava que o Espírito Santo desce sobre nós até à alma para a renovar e revivificar!
Por fim a chuva deu-nos algumas tréguas. Estávamos a meio caminho do nosso destino final, a Mata do Convento franciscano de Montariol. Porém, decidimos regressar a casa. Era uma hora da tarde e ninguém protestou. As sandes e os sumos esperavam por nós. (Gostei sobretudo que ninguém tivesse protestado, sinal que o espírito de aventura era suportado pelas asas da compreensão!)
Durante o almoço que comemos diante do olhar da Senhora do Carmo o tempo não melhorou o suficiente para decidirmos andar o caminho em falta. Mas deu para tomar café. No fim da pausa do café e porque já não dava para andar para trás, caminhamos em frente. Decidíramos rezar o Terço em tons juvenis e vestido de roupas carmelitanas. Assim, na porta de entrada da igreja rezámos o primeiro mistério e recordámos o nosso baptismo; à volta do altar rezámos o segundo e fizemos memória da Eucaristia que nos alimenta e fortalece; junto do túmulo de Frei João d’Ascensão Neiva rezámos o terceiro e recordámos que há santos no meio de nós, que caminharam no passado ao nosso encontro para nos trazer a Igreja e o amor a Nossa Senhora; no jardim conventual rezámos o quarto e recordámos a beleza do Carmelo povoado de tantas, tão belas e variadas flores; na capela do antigo Seminário rezámos o último e recordámos aquela casa vazia e outros muitos Seminários vazios e a fome imensa de sacerdotes e de Eucaristia!
A tarde pusera-se boa. Quente até. Mas já decaía, não dava para muito mais.
Depois de breve intervalo recolhemo-nos de novo. Era preciso continuar essa carminhada interior que o Senhor nos proporcionara com solicitude. E lá fomos.
Fizeram-se os últimos preparativos para celebrar a Eucaristia. Era a do Oitavo Domingo Comum e ainda faltava a maior inundação. Uma inundação de fé, de festa, de amor, de serenidade, de fogo e de luz. De alegria, de paz, oração e de Espírito Santo. Foi serena a Eucaristia, serena apesar de demorada. Demorada, mas sem que ninguém reclamasse, sem que ninguém se cansasse. Celebrada demoradamente para que Jesus falasse calmamente a cada um e cada um caladamente a Jesus.
Antes da Eucaristia a máquina fotográfica oficial emperrou, destemperou-se, retorceu-se, transtrocou as funções, sei lá. (Coisas da inundação, concerteza!) E o maquinista, decepcionado e desesperado, nada pôde fazer. Em suma, foi impossível tirar fotografias. O que até é bom e simbólico, pois há coisas que as palavras não alcançam dizer e é melhor que nada digam, mas que calem no fundo da alma, que se amainem nesse mais profundo centro onde só entra o Amado e a amada. E se as palavras ficam mudas e incapazes também não é bom que as fotos falem o que só poderiam falar enviezado e desfocadamente.
Não há, portanto, fotos da Eucaristia. Nem fotos nem palavras. Ou se há são muito poucas. Ficou, porém, célebre, uma em que o sr. José recebeu do carminheiro mais jovem, o Romão, uma faixa do Movimento. Estão a apertar as mãos sob o olhar atento do Frei João. Essa é a melhor síntese da carminhada, da inundação, daquela Eucaristia, daquela família. Foi bonito.
Depois, debaixo duma enorme bola de fogo que se acendeu ali, pedimos ainda ao Espírito Santo que inundasse as nossas realidades, as nossas pessoas, famílias, amigos, grupos, Igreja, comunidades, doentes, sacerdotes, escolas, ruas, recreios, casas, bibliotecas, trabalhos.
Por fim, recebemos a bênção, uma bênção de luz e de fogo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. E estava tudo terminado. Estava tudo terminado, não. Falta aqui dizer que na carminhada de Alhadas e Maiorca, no dia 16 de Fevereiro passado, nos animáramos a saudar o Santo Padre enviando-lhe uma carta. A carta já foi postada por isso não falaremos aqui dela. Basta percorrer o Blog. Pois sucedeu que obtivemos resposta e foi agora a altura de dar conhecimento dela. Lemos a carta na Eucaristia e saudamo-la com uma grande salva de palmas, como se o Papa ali estivera em pessoa. A carta será postada a seu tempo, dando tempo apenas para saborear a que em tão boa hora lhe escrevemos.
Tudo estava consumado. Urgia partir dali para Alhadas, Aveiro, Caíde, Viana e os bairros em volta do Carmo. Urgia partir, mas como sempre o mais difícil são as despedidas. E como falhava o desembaraço veio a chuva e meteu tudo dentro dos (auto)carros.
Também me fiz à estrada. Lentamente. Chovia tão forte, tão fortemente que nada se via. O regresso foi lento. Ao que soube depois choveram nas estradas que foram para o Sul, nas que foram para o Norte, para Este e Oeste. Choveu fora e dentro de nós. Houve inundação. Alguém garantiu que sentiu um tsunami. Não serei eu a desmentir.
Houve concerteza Carmo Jovem em comunhão com Deus Espírito Santo.
Estão terminados dois anos de carminhadas. Oito ao todo. Há quem garanta que valeu a pena porque nada falhou. Por mim, garanto simplesmente, que caminhamos na presença de Deus e que Deus caminhou connosco. Eu senti-O. Mas é impossível que neste deserto que já leva dois anos não tenham surgido falhas. Ausências. Inquietudes. Percalços. Talvez a Luz brilhe de tal forma que as não deixe ver.
Foi bom e continua a ser bom carminhar.
P’rá frente é caminho. Ele vai à frente.
«Sois testemunhas do Espírito Santo, carminhai em paz!», gritou-nos novamente o Tiago no fim da Eucaristia. Pois somos. Carminhemos! Em Alhadas e Maiorca os campos de arroz estão verdes, tão verdes que não deveríamos deixar de carminhar.