Uma crónica impõe-se qualquer que tenha sido a epopeia navegada. Eis, pois, a do 4campaki. Porém, mais que o cronicar clássico aqui se abrirão janelas sobre parcelas da vida do quarto Acampáki que durou oito dias mas promete perdurar por um ano. Aqui nos contamos, porque como disse uma 4campaki: «Esta é uma experiência única que recomendo a qualquer um!»
4campaki
4campaki lê-se Acampaki e quer dizer quarto acampamento dos Jovens Carmelitas. Foi há quatro anos que começamos. Parece pouco mas não é tão pouco assim.
No 4campaki éramos dezasseis jovens contando com a Nandinha que teima e bem em chamar-se jovem carmelita. O número decresceu para quase metade. Se deixou pena o abaixamento das inscrições, também deu para compreender as impossibilidades. E também há quem diga: «Na minha agenda faz parte o Acampaki, não o dispenso nem por nada!»
Metade do grupo tem entre quinze e dezoito anos, a outra parte é mais velha e experiente. Juntos faremos uma boa caminhada.
Os mais velhos não esperam surpresas, os mais novos sim. E talvez sejam estes quem mais perto está da verdade.
Clarminhada
O que é uma clarminhada? É seguir em frente, sem medo. De noite. É deixar cair o sol, abraçar a lua e abandonar a segurança do acampamento recusando o repouso da tenda. É afoitar-se ao caminho, numa noite quente, acompanhado por amigos, confiar nos coordenadores, seguir a Estrela Polar. E acreditar que havemos de chegar, mesmo que seja em último lugar.
Havemos de chegar? É o que veremos. Já veremos se chegaremos.
Na noite do dia 4, Quarta-feira, depois da cozinha arrumada e posto o acampamento em sossego subimos ao Santuário. Estávamos todos artilhados com faixa do Movimento, o cajado e a Cruz das carminhadas. Connosco subiu a Nandinha, que depois descerá porque não há acampamento sem sentinela.
No Santuário desdobramos as páginas do Guião e rezamos uma pequena vigília que concluiu com a Imposição do Escapulário do Carmo. Partimos logo depois que a Mãe nos abraçou.
Ao longe e ao perto vêm-se incêndios que nos assustam e avermelham os medos que a noite traz no ventre. Partimos em direcção ao mar. Chegaremos cinco horas depois, uns cansados e outros muito cansados. Mas chegamos todos. O caminho já nosso conhecido não tinha dificuldades de maior, a não ser os 20kms de distância.
Chegamos. Chegamos todos. Nada há que pague uma praia livre a receber-nos e uma imensidão de mar a conversar connosco. De repente, tudo era imenso: o sono, os quilómetros andados, o mar, o céu, as estrelas. E nós, pequeninos, quase vencidos pelo sono, rezámos o terço em honra dessa Virgem que se vestiu com a cor do Céu e é Estrela do mar!
Depois dormimos duas horas em palco, sim em palco, no que deve ter sido a peça mais surrealista que alguma vez se viu, até porque a plateia nada viu porque não havia ninguém para ver senão o nosso dormir.
Confissão
Chega a Sexta-feira chegam as confissões. O momento vai sendo preparado com ligeiros e oportunos momentos de catequese. Chegada a hora, depois duma pequenina celebração comum, três sacerdotes espalham-se pelo monte. E os acampakis, já familiarizados com eles, vão aproximando-se ou de um ou de outro. Só há uma regra: cada um se confessa ao seu gosto e ao seu ritmo. (E é na intimidade duma confissão que descobrimos que o Rafael não é baptizado!)
Era meia tarde dum Agosto quente. Ouvir cânticos no Santuário e ver pés jovens cruzando o monte como quem regressa a casa do Pai é do mais bonito que há.
Que não terminem as confissões no Acampáki!
Incêndios
O insulto maior é ver montes a arder. Noite e dia fomos assistindo a repetidos incêndios que irrompiam nos montes como se houvera uma mão, mais nefasta que providencial, que ia ceifando a natureza que nos regala.
Para nós Deão é um resquício de Paraíso. Essa é a ironia e insulto: ir ao Paraíso e dali ver que tudo à volta arde. Se é verdade que todo o fogo tem algo de purificador, a maior verdade é que nada víamos purificado, antes mais e mais triste, mais e mais esventrado e negado pela força destruidora de lume tão grande!
Jogos
Quem não gosta de jogar? Para que o tédio não plante a sua tenda entre as nossas recorremos aos jogos de grupo. O futebol não pode falhar, e a Portuguesa cantada por todos! (De fazer lembrar os grandes palcos onde joga a Selecção!). A equipa dos galifões contratou o Anelka branco, mas levou uma abada!
A Caça ao Tesouro valeu mesmo a pena. E no fim houve mesmo tesouro. Em poucos minutos a Quinta virou ilha e oceano, viram-se piratas e tugas corajosos a combatê-los. E quando o barco foi ao fundo houve de saltar-se para as águas e buscar os tesouros.
Os saraus também não falham. E quem disse que éramos um deserto de artistas? Não somos. Em cada jovem acampaki há um actor escondido. Diz quem viu que se passaram horas bem passadas a preparar apresentações que nos fizeram rir até às lágrimas.
Até houve torneio de sueca ganho por uma equipa que nunca tinha jogado, mas que, por telefone recorreu a treinadores estrangeiros – as mães! Verdade seja dita: foram tão bem treinados que no último jogo fizeram três arrenúncias sem que os adversários se apercebessem. E ganharam! É obra ou sorte de principiantes!
Oração
A oração é uma das melhores fatias do 4campaki. Logo pela manhã, ao despertar, sobe-se para junto de quem nos espera: Nossa Senhora do 4campaki. Desde a primeira hora que a Mãe tem um Santuário na encosta do monte. Mal ficaríamos se a não visitássemos, quer pela manhã, quer para a oração de Vésperas (uma hora já muito depois do anoitecer!)
No 4campaki a oração da manhã é sempre um pouco sonolenta. Mas a verdade é que com ou sem sono os filhos são sempre belos para a Mãe. Também no 4campaki sempre que nos abeiramos da Mãe ela se mostra mais Mãe e Mãe feliz.
As orações mais belas são as de Vésperas, as tais que rezámos quando a noite já vai grávida da madrugada. São momentos especiais, fortes, poderosos. Um foco sobre as nossas cabeças sublinha o espaço sagrado da oração, as árvores aspiram-nos para o alto, o alto acolhe-nos num regaço cheio de estrelas. No nosso Santuário entra o vento e o calor, o cão que ladra e a cigarra que canta, entra o silêncio e a festa popular que, algures, corre na margem duma estrada.
Os momentos de oração são tão belos, que ninguém os perde. E que importa se alguém adormece. Deus não é Pai? Como deve sorrir ao ver-nos assim, criaturinhas no meio dum monte a rezar!
Este ano rezámos especialmente com S. Rafael Kalinowski, mais anjo que homem, que em seu tempo conduziu milhares de jovens pelos caminhos de Deus e da oração, e que na provação foi reconhecido como intercessor das necessidades dos companheiros junto de Deus!
E rezámos com Teresa de Jesus, mestra sábia e prudente, que, dia a dia e hora a hora, nos animava com palavras que animam: «São felizes as vidas que se consumirem ao serviço da Igreja»; «Quem não deixa de caminhar, mesmo que tarde, chega ao fim.»; «Oração e maneiras sofisticadas não combinam!».
Teresa sabe do que fala. Por isso a trouxemos connosco, para aprender mais dela. Ela, por sua vez, alegre e feliz, com estes pequenitos filhos seus, prometeu continuar a caminhar connosco.
Pais
Ah, pois! Afinal, sim. Sim, oito dias depois damo-nos conta que ainda existem pais e irmãos e outros amigos, e uma cozinha e cama confortáveis em nossa casa.
O Acampáki não corta laços, antes laça os laços já laçados. Por isso é sempre bom ver que o Acampáki acaba, que acaba um experiência de vida em grupo, uma experiência enriquecedora que há-de dar frutos.
É sempre bom saber que fora círculo paterno os filhos comem sopa, cenoura e ervilhas, atum e repolho, põem e levantam a mesa, sabem onde se colocam os talheres e sacodem a toalha, lavam a loiça e passam a esfregona, cuidam do acampamento e da tenda. Tudo coisas para vida.
É sempre bom saber que fora do ninho paterno os filhos sobrevivem à privação da net e da televisão, da consola e telemóvel.
Não há dia no Acampáki em que não rezemos pelos pais e familiares. Mas de tão presentes parecem ausentes, por isso no finzinho, as saudades são uma surpresa tão grande que é imensamente difícil conciliar a vontade do regresso a casa com o desejo (impossível de realizar!) de prolongar os dias do Acampáki.
Piscina
A piscina é o mel na ponta da ratoeira. Quem não gosta de piscina? Todos, todos gostamos. E ao contrário do ano passado, este ano ela foi bem gostosa. O calor foi intenso, não choveu, nem de noite houve frio, pelo que saltar para a piscina era um regalo. Mergulhar e diluir-se na água sabia a recompensa.
As horas de piscina não eram muitas, não. A sagrada hora da digestão tem de ser respeitada. A da oração e a do silêncio também. A hora das aulas, das refeições e outros momentos comuns também nos privaram do frescor da piscina. Restam poucas horas, mas as poucas que restavam foram bem aproveitadas. E como havia menos acampakis restava mais piscina para quem veio.
Sabe bem a piscina com o calor. Fazer bombas e mergulhos. Refrescar a estoliada pele é do melhor que há.
As horas de piscina foram poucas, mas alguns aproveitaram-nas tão bem que julguei que sairiam da água feitos rãs!
Professores
É um clássico dos nossos acampamentos. Quatro das manhãs foram dedicadas a escutar alguns mestres, de áreas várias, para ir ao encontro dos diferentes gostos e interesses.
Assim recebemos o Luís Correia com a Célia e o filho João Manuel. Depois vieram a Ana Lúcia que estava no acampamento, o João Regueiras e o Fernando Ferrão.
O Luís foi o segundo Coordenador do Movimento e trouxe-nos um baú com muitas memórias para contar. Eram memórias de jovem carmelita, inquieto e preocupado com o futuro, dedicado à oração e aos amigos, ao acolitado e ao futebol. A Universidade chamou-o para Faro e separou-o da sua comunidade, mas quando regressou encontrou-se com o Carmo Jovem. Entrou e acabou Coordenador – «com menos actividades nacionais!», diz. A vida foi-o encaminhando por esta ladeira. Entretanto, conheceu a Célia, namorou a Célia e apresentou-lhe o Carmo Jovem. Por cá andaram enamorados, noivos e casados. Depois nasceu o João Manuel. Hoje, em palavras da actual Coordenadora, a João, são um casal gotinha, quer dizer, carmelita, jovem carmelita.
O Lilo falou mais de duas horas. Não houve tempo para ir à piscina, mas foi muito refrescante navegar nas suas memórias, beber das suas palavras, recebê-lo em nossa casa e sentir que ele estava na sua. Falou-nos de oração, de como reza pessoalmente e como casal, e como o João Manuel, de quase dois anos, também reza. Bem, rezar não sabemos, mas sabemos que gostosamente rasga as folhas da Liturgia das Horas enquanto os pais rezam!
Das muitas palavras do Lilo ficaram-me estas: – «Não tenhais medo! Não tenhais medo de dizer que sois católicos!» E depois falou-nos como na sua vida se tem apresentado como carmelita e homem de fé, nos mais variados contextos de trabalho e lazer.
Como não podemos dizer tudo acerca do Luis, falemos da Ana Lúcia. A Bianca supriu um professor convidado que não pôde fazer-se presente. Ela prefere ficar calada a falar, precisa de descansar mais que ensinar. Posta, porém, perante o desafio aceitou. E foi assim que a sua foi uma aula diferente. Despertou para a nobre arte do teatro como Carochinha, aos seis anos. Depois não saiu mais do palco. O primeiro ano da Licenciatura de Teatro foi uma coisa dura, diferente, um embate e um combate. Ali ninguém pergunta por cartões e identidades. Mas as coisas contam, e da religião ninguém fala porque poucos sabem e assumem que existe. Durante este ano viu-se no deserto, desamparada, desejosa de acampar com Ele e connosco. Foi um ano académico rico, atafulhado de saber e informação, de riqueza e descobertas. Mais que nunca iniciou a aventura da interioridade, donde tudo provém.
Na Escola baptizaram-na de Bianca. E foi assim que passou à segunda parte da aula. Propôs-nos o sugestivo e maneirinho Exercício de Alexander, que, pouco a pouco, nos levou lá para dentro, para o mundo de cada um. Quando despertámos – e não foi bem um despertar, mas um regresso – todos tínhamos feito uma viagem, mais longa ou mais curta, sem termos saído das mantas estendidas na Mata do 4campaki.
No dia de aulas da Ana Lúcia – Bianca, acrobata das emoções – também não houve piscina.
O terceiro professor a chegar à nossa Universidade foi o actor e encenador João Regueiras. Depois de muitos anos a fazer de tinta, prefere agora ser pintor. Digo, encenador. E foi pelos desdobramentos da metáfora que ele nos levou. Também nos fez percorrer os caminhos dos mais de 25 acampamentos com a juventude jesuíta (dois por ano!) e levou-nos ainda para as suas salas de aula do Colégio das Caldinhas. O João reza e respira teatro, o teatro que aprendeu com o pai e ensinou aos filhos. Não sendo uma arte de fazer rica a gente pobre, também daí não demoveu os rebentos, porque o teatro seguirá fazendo falta para elevar os valores à altura dos faróis marítimos para guiarem as rotas da convivência comunitária. Existem os GPS, não existem? Sim é verdade, mas ainda assim não se dispensará o farol que avisa a proximidade da costa.
A conversa de tão iluminada também não deu lugar à piscina.
O quarto professor foi o Fernando Ferrão, da Rádio Altominho. Tudo começou há 24 anos quando foi convidado de emergência a pôr discos a rodar, porque… porque tinha muitos discos! As suas palavras levaram-nos pela história da Rádio em Portugal e ao lugar da mesma no contexto da comunidade nacional. Também nos falou do espaço da política e da religião nas ondas da rádio.
Esta foi a aula mais curta, porque nesse dia a Volta a Portugal em Bicicleta chegava a Viana do Castelo e o Fernando tinha de coordenar a emissão.
Foram quatro professores em quatro manhãs diferentes, que emprestaram um colorido vivo aos nossos dias de acampamento. Ficou-nos a convicção de que há muita riqueza para partilhar e que a partilha é tanto mais bela quanto mais as bocas estão famintas. Foi o caso. É opinião comum dos 4campakis que depois de cada aula deveríamos poder saltar para a piscina, como depois da quarta aula. Mas, como calar quem nos sacia com as palavras de fogo que nos traz a paixão pela arte que (re)apresentam?
Refeições
O que é mais importante num Acampáki? Oração? Silêncio? Clarminhada? Aulas? Viola? Jornal de Parede? Saraus? Karaoke?
Não, nada disso. Um Acampáki começa a construir-se pela defesa, e a nossa defesa está na cozinha, entre as panelas.
No fim, com a mochila às costas, o carro pronto a arrancar e a memória cheia de experiências novas, cada um de nós salienta este ou aquele aspecto. Promete a pés juntos que virá ao próximo se no plano constar as actividades que gosta. E a Coordenação respeitará todos os caprichos, porque quer que todos venham. Mas o que não pode mesmo faltar no Acampáki é a cozinheira. É pela Nandinha que sempre começamos os nossos acampamentos. Se nos falta a Nadinha dos Rojões, como sobreviveríamos nós? Por isso, venha o que vier, Nandinha, para o ano estás cá, porque o Senhor também anda entre as panelas e nós queremos provar ao menos uma sopita feita por ti!
Silêncio
O 4campáki tem a Rádio Lima, ou Ondas do Lima, não percebi bem. Tem discos pedidos e entrevistas. Este ano entrevistou em directo por telefone um ouvinte francês!
A coisa funciona mais como certas rádios que põem o CD a rodar e já está. E com isso faz barulho e dançar as uvas. Já não está mal.
E cala-se. Sim, cala-se. Cala-se durante a hora de silêncio. Durante a bendita Hora de Silêncio. Durante essa hora ouvimos a rádio da natureza, comungamos com os seus sons, deixamos que tudo venha ao nosso encontro sem nada a espantar-nos.
Durante uma hora o ruído do 4campamento morre. Os 4campákis dispersam-se pela relva com um livro na mão que a Coordenação sempre tem o cuidado de oferecer. (Este ano foi nosso privilégio ler a crónica da IV Peregrifati, da autoria do António Branco.) Também há quem não leia, que apenas contemple, que se expanda bem para lá dos limites do horizonte.
A hora do silêncio é das horas mais amadas do 4campaki. Também não terminará para o ano, porque, afinal, o silêncio encontra-nos e cura-nos!
Fim
Podíamos sobreviver sem Acampáki? Poder podíamos, mas não era a mesma coisa. Por isso aqui ficam agradecimentos à João e ao Tiago, à Nandinha e ao Carmo de Viana, aos professores, acampákis e aos pais, ao Ricardo e à Paula, à Maria da Luz, a quem sonha e ajuda a tornar possíveis realidades como estas.
Deus vos abençoe.
Frei João Okapi