E se uma das nossas caminhadas fosse à noite? (Já tínhamos carminhado uma no segundo Acampáki, mas ele já é tão radical que parece que não valera.) Por isso, há uns meses atrás, numa das nossas reuniões alguém perguntou: e se uma das nossas carminhadas fosse à noite? E que nome lhe daríamos, perguntou-se de lado?
Ficou assente, que faríamos a bendita carminhada. O nome só chegaria mais tarde, e pela via do óbvio: clarminhada, para significar que era uma caminhada do Carmo Jovem — carminhada — e à noite, isto é, como quem persegue a luz clara — clarminhada.
Ficou agendada para Aveiro, terra em que ainda não carminháramos e também por ser plana e com um bom percurso entre o Carmo e o Santuário de Nossa Senhora de Vagos. O tema também foi fácil de eleger, escolheu-o São Paulo: Todos vós sois filhos da luz. Eia, pois!
Em tempo oportuno as coisas foram-se preparando, buscou-se o pão e a manteiga, quem escrutinasse o trajecto, não esquecesse as velas, do passa-palavra, das lanternas, carro de apoio, faixas, recordações, guiões, cartazes, slides para o blog e um sem número de coisas mais que sempre faltam…
E os dias e as ânsias da noite foram engrossando como um rio em dias de chuva.
Chegada a hora fomos sendo acolhidos na Igreja do Carmo de Aveiro e depositando os automóveis no parque do Santuário de Nossa Senhora de Vagos. Quando os primeiros chegaram outros muitos estavam ainda a muitos quilómetros dali, mas haveríamos de chegar todos.
A Vigília da Luz, preparatória da clarminhada, começou com um pontual atraso de trinta minutos. Presidiu o Pe Vasco Nuno, que nos foi convidando a reacender a luz da fé na Luz de Jesus.
Ao terminar a Vigília todos puderam dizer que acenderam a sua vela na Luz de Cristo, porque só Ele é a Luz; porque de noite ou de dia Ele é a Luz;
porque jamais alguém pode dar a Luz como Ele; porque Ele nunca falha; porque…
A seguir à Vigília havia uma prova de chá.
Os bolos vieram de Viana e da Figueira da Foz, da Gafanha e de Rosém, de Oiã e Avessadas. O chá foi obra da mãe Orquídea. Enquanto o degustávamos havia juras de pés rijos e vontades inquebrantáveis.
Também havia muitos abraços: afinal já não nos víamos desde a Peregrifáti, no início do mês…
E por fim, feitas as contas, depois duma fotografia de grupo junto à estátua de São João da Cruz, lá partimos os 69 clarminheiros [Vindos de Alhadas (Figueira da Foz); Aveiro; Avessadas (Marco de Canaveses); Braga; Caíde de Rei (Lousada); Coimbra; Esgueira (Aveiro); Gafanha da Encarnação (Ílhavo); Gafanha da Nazaré (Ílhavo); Moinhos da Gândara (Figueira da Foz); Rosém (Marco de Canaveses); Viana do Castelo]!
As idades iam dos 16 aos oitenta e muitos! Ia uma avó, uma mãe e uma filha. Ia gente com promessas e promessas de gente. Gente para quem a noite não assusta e gente para quem o susto é estar fora da cama à noite. Era, como se vê, um grupo muito variado. As horas seguintes vão revelar o melhor de todos.
Logo à partida ficou decidido amputar o trajecto em cinco quilómetros — A visita ao Jardim Oudinot ficará para outra vez. As gentes de Aveiro — que, inesperadamente para nós, ingénuos, eram muitas! — agradecerão, pois o Jardim Oudinot fica no oposto de Vagos! Ainda assim, prevê-se que a extensão da clarminhada rondará os 20 quilómetros. Mas hão-de parecer mais. Oh se hão-de!
A clarminhada começa sem mais, em passos calmos e largos pela Avenida Lourenço Peixinho abaixo. A primeira paragem foi no Santuário da Senhora dos Campos, coração da Mata da Gafanha da Nazaré — os campos! A paragem permitiu algum diálogo, perceber os ritmos, motivações e garra para se chegar ao fim. Estava vencido um quarto das passadas. Faltam ainda muitas surpresas. (De que todos suspeitam, bem entendido!)
Rezamos três Ave Maria em honra do trabalho humano simbolizado no arroteamento dos pântanos da Gafanha e na sua transformação em campos. E partimos embrenhados pelo escuro que as árvores de um e outro lado da vereda mais sublinham, e pela noite, que, revelando estrelas não revela de todo o esplendor do Luzeiro nocturno.
Pouco depois entrámos na Gafanha da Encarnação, passámos pela Bruxa e acedemos ao pior troço do trajecto: uma picada de pedrinhas brancas, rijas e soltas, e de buracos adormecidos, que acabávamos vencendo quanto mais não fosse porque o horizonte nos oferecia um espectáculo grátis de luz, serenidade e encanto enquadrado pela Costa Nova, e ali, à beirinha, a Ria, amena, gentil e feminina, que nos vinha beijar e incentivar.
A segunda paragem foi um pouco mais à frente que o previsto, no terreiro da Igreja da Gafanha do Carmo. São quase quatro da manhã — Já? — e alguns já começam a fazer contas de cabeça: estávamos um pouco além do meio caminho, temos ainda de celebrar Missa e devolver dezoito pessoas à Estação do Caminho de Ferro. Como é?, perguntam, vamos chegar a horas ou não? Vamos, como não? — É a resposta, porque outra não poderia ser. Os que não fazem contas saboreiam a segunda prova de chá, bebem água fresca ou sumos, provam fatias generosas de bolo. (Dizem que havia dois ou três muito bons!, mas as contas impediram que os provasse!)
Os olhos experimentados dão uma volta pelas tropas e detectam uns mais animados que outros, algum sono ou muito sono conforme a verdura dos anos, e também algum sofrimento: mais uma vez se verifica que a escolha do calçado é decisiva. As solas finas são facilmente mastigadas pela estrada e pelas pedras pequeninas e algumas solas dos pés estão doridas, sobretudo uma senhora jovem, que, entretanto, já chamara um familiar. Como não pode continuar sem ela, também desistem as duas companheiras. E desiste uma mãe e uma filha que provaram que são mulheres de garra, mas a missão de ambas estava mais que cumprida. Os restantes abalámos. Faltam talvez uns sete quilómetros, uns fáceis sete quilómetros, mas na cara de alguns — na cara, mas sobretudo na cabeça! — está bem de ver que não sabiam no que se tinham metido. Afinal, vinte quilómetros nocturnos não se parecem em nada a ir de carro beber uma bejeca ali ao lado!
Mas estamos a chegar, a noite está um pouco mais cerrada, fria e húmida. Mas não há vento, nunca houve vento, o que foi sempre uma boa notícia. Estava no ponto rebuçado para se rezar o Terço e as condições pareciam boas: uma recta enorme e larga permitiria que caminhássemos juntos e juntos rezássemos. Estava tudo bem, mas o Céu surpreendeu-nos e começou a chover. Uns vestiram casacos, outros foram buscá-los ao carro e outros não tinham casacos, por isso os partilharam dois a dois cobrindo pelo menos a cabeça. Só um negro e experiente guarda-chuva se abriu, o que revela bem da previdência e da experiência do grupo — e não faltaram ali cabeças encanecidas! (Ah! Peregrinos de água doce!)
Ora aconteceu que os ânimos que iam tão animosos logo arrefeceram, e cada um tratou de se animar a caminhar: faltavam cinco quilómetros, íamos numa recta, sem carros e… sem nada que se visse nem para um lado nem par ao outro. Só se podia caminhar em frente, e era em frente que clarminharíamos. Assim foi, assim se fez.
E o Terço? — O Terço fica para a próxima. Aquele momento era de Via Sacra, mas duma estação não habitual nem prevista. Começo então um reconhecimento de trás para a frente, num longo contra-relógio e apercebo-me de quão longa se tornara a fila em pouco tempo e por causa duns pingos que não passaram dum arremedo! Apercebo-me que vai tudo animado que é sempre mais e melhor que conformado. Entretanto, a chuva ou arremedo, pára e vem um ligeirinho nevoeiro. Nada de mais, mas uma presença mais. A meio da fila encontro um adolescente sem par — um ímpar, por assim dizer, ia caminhando entre dois pares que vão conversando como velhos amigos. Falo-lhe e não me responde. Soa-me uma campainha porque me quer parecer que o sono lhe empasta as palavras, meto-lhe o meu braço no dele e reboco-o. Não tem palavras para dizer. Ganha, talvez, um pouco de confiança, e vai respondendo com monossílabos às minhas perguntas. É um crânio da turma do 10º Ano, deita-se sempre antes das 22:00h, e aos fins de semana antes da meia noite. Na clarminhada já deu o que tinha a dar, mas ainda não sabe ou talvez saiba mesmo!, que tem de seguir em frente. Ainda rezamos juntos uma Ave Maria, mas não há nele fôlego para mais. Reboco-o como se fora um transatlântico levado pela corrente. Por mim, não o largarei mais e é com ele que chego ao Santuário, oferecendo-o à Mãe. Estou certo que nem ele nem Ela esquecerão mais aquela bendita noite.
Depois da chegada dos últimos dão-nos 15 minutos para nos recompormos e depois iniciarmos a Missa. O Santuário abre-se e acolhe-nos como um regaço fofo de Mãe. Entretanto uns refrescam-se, outros esparramam-se nos colchõezinhos, além afinam-se violas, ao lado os acólitos tratam das alfaias. A noite está quase a dar à luz o dia e os passarinhos saúdam-no e ensinam-nos a fazê-lo de coração aberto e alegre, disponível e agradecido.
Começa a Missa. Preside o Frei João, concelebra o P. Vasco Nuno e todos nós. Há apenas oito cadeiras para os seniores e um chão confortável para todos. A Missa começa cantando que já se ouvem os nossos passos e depois pára: havia que ouvir aquele coro de passarinhos que ensaiara um belo concerto para nós. E ouvimos. Que belo! Que bom é Deus que nos dá caminhos e passarinhos, estrelas e santuários, frescura e verdura, pedrinhas, água fresca e chá, oração, guias (que belos guias!), amigos sem igual, carro de apoio (não conhecemos melhor nem damos o telemóvel dele, podem estar certos!), noite e luz, boa disposição, poder de convocatória e de resposta, pão e vinho, oração e louvor. Que bom e que belo é Deus!
Na Missa tudo é surpresa. Tinham-me perguntado se seria uma Missa normal e respondi que sim, porque não havia anormais entre nós. Mas não o seria de todo, pois haveria de ser uma Missa ao contrário: ali todos nos conhecíamos, todos nos ajudáramos, todos estávamos sujos, suados e cansados, com vontade de rezar, pedir perdão e agradecer, ouvir, pedir, comer e partir.
Duas coisas ficaram da curta — enfim, uma curta! — homilia do Presidente: 1) Nem todos sabem, se é que alguém saberia, por que tantos nos encontrávamos ali. Porque sofremos tanto, enfrentando a noite, o susto e o medo, o imprevisto e o desconforto. Sim, se nos pedissem para nos justificarmos não se sabe bem o que diríamos se algo disséssemos. É muito difícil dizer porque preferimos a odisseia dos caminhos à odisseia dos sofás! É muito difícil até justificarmo-nos a nós mesmos. No entanto, estávamos ali, sob o olhar atento do Pai. Sim, Ele tudo vê e tudo conhece com verdade e profundidade. Ele recolhe cada gota de suor, casa respingo de dor muscular, cada surpresa e medo que nos assalta, a generosidade e os anseios de superação, a vontade, o desejo, a graça, e depois, tudo nos devolve em valor acrescentado; 2) A nossa clarminhada foi concretizada na véspera da celebração litúrgica da Solenidade da Ascensão. Cumpríramos simbolicamente o mandamento do Senhor: Ide por todo o mundo. Que melhor maneira de celebrar a Ascensão: O Senhor deixa de caminhar entre nós, e manda que os seus amigos caminhem até ao fim do mundo! E ali estávamos nós, não no fim do mundo mas no fim da clarminhada, dizendo-Lhe com os pés doridos e o corpo suado que lhe oferecíamos tudo o que temos e somos para que no mundo se ouça a sua Voz, se conheça a sua Boa Nova, se anuncie a sua Salvação.
Terminada a Missa, terminou a festa. Havia ainda uma bela lembrança, tão bela quanto simples: ainda ninguém materializara a Gotinha, o nosso símbolo, e hei-la ali, castanha, bem recortada e bordada. Parabéns pela ideia e pela oferta!
Chegou por fim o tempo dos abraços e beijos rápidos, que não impediram o rápido e sereno fim de festa. Às sete horas e cinco minutos trinta e seis pés correm ágeis, como filhos de gazela, pela gare dos Caminhos de Ferro de Aveiro. Ninguém diria que não tinham dormido, que os corpos estavam doridos da clarminhada de 20 quilómetros e que tinham rezado a Missa, apesar do desconforto e das dores.
Por fim ouviu-se um priuuuuuuuuuuuuuuu! E lá foram.
Às nove e meia choviam no telélé do escriba mensagens de bom regresso, mas ele dormia profundamente e a velas despregadas numa cela conventual à beira-ria plantada.
O regresso a casa foi calmo. A missão estava cumprida. Levemente vai reborbulhando em mim um desejo: abandonamos as carminhadas e passamos a fazer só clarminhadas? Que dizem? Quem levanta a mão?
Eu levanto!